Águia desassossegada
Os lamentáveis incidentes a seguir ao jogo com o Tondela aconselham o Benfica a não insistir na posição de recusa quanto à existência dos grupos organizados de adeptos. Não só existem mas também dão sinais de uma organização preocupante: apedrejarem o autocarro da equipa à chegada ao Seixal e deixarem marcas repugnantes da sua passagem nas residências do treinador e de alguns jogadores revela informação, seleção de alvos, preparação e uma linha de comando. As autoridades vão fazer o seu trabalho, como sempre fazem, mas os clubes, definitivamente, não podem servir de porto de abrigo a esta gente.
As claques são até necessárias ao colorido do futebol, desde que extirpadas da influência nefasta de grupos marginais e violentos, que se dedicam ao tráfico e outras atividades ilícitas. Neste sentido, Luís Filipe Vieira deve separar o trigo do joio e das duas uma: ou aplica a medida inflexível do seu vizinho da Segunda Circular, e corta a direito, ou opta por uma solução negociada de controlo à distância, adotada no dragão, em que o superintendente-mor Madureira mantém a disciplina, define a estratégia, é aceite como interlocutor pela PSP e flexibiliza a lei às suas conveniências, como se observou no plano de apoio à equipa portista no jogo em Famalicão.
Na altura de levantar a feira, o oficial da PSP, Rui Pereira, com infinda condescendência, como convém a uma força de manutenção de ordem pública, afirmou que tudo correra de feição. Sim, creio que correu, com pedagógica tolerância e com Madureira, estrela de cinema a falar em direto para as televisões, preocupado em respeitar as instruções da autoridade de saúde, à sua maneira, claro. Como escreveu o jornalista Pedro Cadima, em A BOLA, ninguém esticou a corda.
Voltando à noite de quinta-feira, a malvadez não teve graves consequências, é verdade, mas andou perigosamente perto de acabar em tragédia.
O Benfica segue, a par do FC Porto, na frente da classificação, tem mais um golo marcado e menos quatro sofridos, está longe da situação de penúria do rival e, no entanto, parece que a vida anda zangada com a águia e em paz com o dragão.
Se alguma espécie de crise anda no ar, Luís Filipe Vieira é o primeiro culpado. Por ser o presidente, claro, e por, desde o dia 1 de junho, em entrevista à televisão do clube, ter colocado o treinador com um pé dentro e outro fora. Interpretaram assim jogadores, adeptos e observadores. Declarou que Lage vai continuar, seja campeão ou não, como se essa condição fizesse sentido num clube com a dimensão do Benfica, estável, prestigioso, com projeto e com rumo e que não deve sujeitar-se nem a navegar à bolina, nem ao sabor das correntes de opinião.
O tema seria irrelevante, até pela razão de simples de Lage ser um jovem mister já campeão em pouco mais um ano como treinador principal, mas não foi inocente, dado poder «acontecer sempre alguma coisa» que não se consiga entender e, nesse caso, mais uma vez, Vieira agitou o papão do costume. Recordou que é amigo dele, que fala com ele de vez em quando, apesar de surgirem notícias não se sabe de onde (santa ingenuidade!) e, naturalmente, não pode dizer «desta água não beberei». Ao mesmo tempo, no lado de lá do Atlântico, Jorge Jesus renovava com o Flamengo, por amor. «Não pus à frente o lado financeiro. Os contratos (propostas?) que tinha em Portugal não tinham comparação possível. Escolhi o lado desportivo», destacou. Em Portugal? Propostas milionárias? A quem quereria referir-se? Se calhar a ninguém, faz parte do alimento da sua personalidade megalómana: era para render Vitória, foi falado para ocupar o lugar de Sérgio Conceição e, pelos vistos, está na calha para substituir Bruno Lage.
Uma coisa é ser Jesus a fazer constar, outra é ser Vieira a dar gás à conversa. O que se enxerga mal. Sendo presidente, e se, verdadeiramente, quer seguir por aí, tem poder e liberdade para decidir. Se não quer, é um erro crasso continuar a usá-lo para exercer pressão e condicionar o trabalho de quem está ao leme da nau. Ninguém gosta, nem aqui, nem na China, nem em parte alguma.
Por se ter convencido de que uma fotocópia da fórmula de sucesso que levou o Benfica à Reconquista seria suficiente para continuar a somar vitórias, sem mais nada, Bruno Lage é o segundo culpado. Com o miúdo Félix e Jonas as coisas funcionaram maravilhosamente, através da prática de um futebol harmonioso, eficaz e surpreendente. Porque havia a classe que hoje falta.
O problema de Lage tem sido ver exibições agradáveis em comportamentos inaceitáveis, proteger excessivamente os jogadores, mesmo quando são merecedores de críticas severas, ou resignar-se perante resultados desfavoráveis, mas o seu maior pecado foi não ter investido em modelos alternativos para travar a queda exibicional da equipa, que é notória e crescente desde outubro do ano passado. O futebol da águia tornou-se previsível e fácil de anular. Há um défice na atitude competitiva, no espírito de combate e na recuperação de bola. Parece um grupo cansado, ou acomodado?
O plantel não é de luxo, mas tem obrigação de fazer muito melhor. Foi justificada a reprimenda do presidente e aos jogadores que não gostaram recomenda-se-lhes que respondam em campo com a competência que recorrentemente lhes tem faltado.