A vitória da mentira!...

OPINIÃO04.12.202106:00

O que se passou no Estádio do Jamor não é, realmente, uma página negra do futebol português, mas sim o capítulo mais recente

ALiga Portuguesa de Futebol Profissional tem soluções conforme o lado de onde sopra ao vento, confiando na falta de memória que existe no futebol, copiando, de resto, o que se passa na política. Este tema, em voga, do jogo da B SAD, com nove jogadores (em campo e zero no banco), contra o Sport Lisboa e Benfica SAD, com onze jogadores em campo e quase outros tantos no banco, é considerado por alguns como uma página negra do futebol nacional e, por outros, como eu, apenas mais uma página do livro negro do futebol nacional, de cujo índice não vou falar porque não se encontra acabado, mas que será um best seller no dia em que for posto à venda, o que não acontecerá tão cedo, porque todos os dias há eventos e acontecimentos para mais umas páginas. Duvido mesmo que esteja vivo quando um dia terminar, se é que algum dia vai terminar.

O Vítor Correia, já há muitos anos, tinha afirmado que no futebol português já tinha visto tudo, e até já tinha visto um porco a andar de bicicleta, só lhe faltando ver a bicicleta a andar de porco! Julgo aliás que quem tem uma certa idade já não verá isso, porque os dirigentes actuais não deixam que o leitão chegue a porco, comendo aquele à volta de uma mesa para resolver os problemas do futebol nacional. É fácil aliás constatar que dali só pode resultar não leitoaria, mas porcaria.

Na falta do livro que nunca será publicado, há já um exemplo, entre muitos, que também constitui, como esta, uma página negra da falta de verdade desportiva, se bem que, para alguns, a falta de verdade desportiva de um resultado ou de uma competição não seja uma página negra, mas antes uma página cor-de-rosa!
Recuemos a Abril de 2005, quando alguma imprensa desportiva, e não só, escrevia:  «Ainda a Liga de clubes não decidiu se autoriza a realização do Estoril-Benfica no Estádio do Algarve, no próximo dia 24, e já se levanta alguma polémica. Tudo devido a questões de ordem regulamentar quanto à legalidade da alteração do jogo, solicitada pelo clube canarinho no sentido de realizar uma receita histórica que pode atingir os 400 mil euros (80 mil contos), face à elevada procura de bilhetes.» Ou seja: por este valor (ou aproximado), o que pouco interessa, o Estoril vendia a vantagem de jogar em casa, diante do público afecto, que não era propriamente o sentimento dos dirigentes. Para eles, o dinheiro foi mais importante que a dignidade da competição, e o valor da receita muito mais interessante que a verdade desportiva.
 

Dias Ferreira defende que o Benfica foi beneficiado com o que se passou no Jamor


Acresce que o regulamento de competições então em vigor (artigo 41.º) apenas previa a mudança do terreno de jogo por razões comprovadas de impossibilidade da utilização do recinto ou por motivos disciplinares, admitindo ainda que, em caso de transmissão televisiva, a falta de iluminação artificial para jogos nocturnos também podia suportar a mudança de estádio.
Por esta razão, este escriba que os leitores têm a paciência de ler dizia à comunicação social que considerava lamentável a hipótese daquela mudança para o Algarve: «É um escândalo dos maiores que tenho visto se a Liga aceitar esta alteração; o regulamento impede estas situações!» A Liga, porém, autorizou, perante a aceitação da Benfica SAD, face à gentileza de antigos dirigentes seus e na altura na governação do adversário.  Uma atitude própria de uma instituição de solidariedade social: o bem pelo bem!...

A Liga, apesar de ter consciência que violava o seu próprio regulamento, ao contrário de agora, conseguiu atribuir competência a alguém que não tinha essa competência e que decidiu aceitar a alteração do local do jogo. Quem foi já não me lembro, nem interessa, porque o que importa é que agora se escudaram na falta de competência para adiar o jogo: dois pesos e duas medidas, porque para a Liga a verdade desportiva só é obstáculo quando convém. Vigarice, disse eu, porque é assim que qualquer dicionário da língua portuguesa qualifica qualquer acção que implique fraude, ilegalidade ou desonestidade. As palavras que estão no dicionário são para ser utilizadas quando apropriadas.
A Liga que consentiu, ou melhor, que permitiu a vigarice não disse nada, pela simples razão que não proferi aquela expressão enquanto dirigente do Sporting (que não era), mas como comentador televisivo com direito a liberdade de opinião e expressão, sem sujeição à disciplina desportiva, onde, como sabemos, se condiciona da forma mais miserável essa mesma liberdade.

O que pediu a alteração do jogo por razões de ordem financeira, mandando às malvas a verdade desportiva, através de um seu dirigente, cujo nome não me ocorre agora, enviou-me um faxe dando-me 24 horas para me retratar ao que imediatamente respondi: «Estou a tremer de medo!» Mais de 16 anos depois ainda aguardo a concretização da ameaça!
O benfeitor, ou seja, aquele que se preocupou apenas com os interesses financeiros do Estoril, longe de qualquer interesse pessoal na alteração do campo de jogo, foi o único que se sentiu ofendido com a expressão vigarice e me moveu um processo crime. Mas, por ocasião do julgamento, o Benfica desistiu da queixa, não porque eu tivesse pedido desculpa, mas, muito simplesmente, porque esclareci aquilo que sempre ficou esclarecido: a vigarice foi da Liga, porque foi a Liga que permitiu aquilo. Os clubes não foram vigaristas, limitaram-se a tirar proveito daquela vigarice: um proveito financeiro; o outro proveito desportivo. Ofendidos não houve, para lá da ofensa à verdade desportiva, coisa aliás pouco importante então, como continua a ser agora.

Hoje, que não há norma a regular a situação ocorrida, ou seja, que a Liga se poderia apoiar nos princípios gerais que devem presidir à competição, põe-se de fora porque não tem competências. Mas teve-as para violar uma norma e ninguém tem competências para violar normas. Para defender e salvaguardar princípios e valores todos temos competência. Enchem a boca com a verdade desportiva, mas quando é preciso defendê-la cruzam os braços. Porquê? Não é preciso competência ou atribuições. Preciso é que tenham princípios e valores morais e alguma coragem e autoridade para os afirmar, independentemente das suas preferências de cor.
Consultei os estatutos da FPF, e o que vi? Que a FPF defende os valores da ética, da lealdade, da verdade desportiva e do fair play e afirma, com pompa e circunstância, que a violação dos princípios enunciados por um sócio ordinário (a Liga, por exemplo), bem como por qualquer agente desportivo integrado na FPF, constitui causa de suspensão ou expulsão! Não acredito...

A Liga, claro, como sócia ordinária, também tem nos seus estatutos, como princípios gerais, que a Liga, os seus órgãos e associados nas suas relações devem observar os seguintes princípios: da legalidade; da igualdade; da ética, da lealdade e da verdade desportiva; da boa fé; da proteção do bom nome do futebol profissional; da transparência; da solidariedade entre os associados! Como dia o Ricardo Araújo Pereira: isto é gozar com quem trabalha!...
Assim esclarecido acerca dos princípios que norteiam os estatutos da FPF e da Liga, passei a consultar o Regulamento de Competições desta última instituição, começando pelo artigo terceiro, onde se definem diversos conceitos, para efeitos de aplicação deste regulamento. São para lá de três dezenas, mas não encontrei a definição de verdade desportiva. Não me admirei, porque o contrário de verdade é a mentira, e aquilo que é a prática não é necessário definir: salta à vista.

Voltarei ao assunto com que abri esta crónica, porque na procura de curiosidades dei com as normas que hoje regulam a alteração do local dos jogos e não consegui deixar de rir! Mas fica para outra ocasião...
O que se passou no Estádio do Jamor não é, realmente, uma página negra do futebol português, mas sim o capítulo mais recente, em que encontramos os mesmos protagonistas. Com efeito, vemos o Benfica novamente, mas usufruindo apenas da permissividade da Liga aproveitada pelos habituais cartilheiros para pedir a cartilhada demissão de Pedro Proença; a Liga agora não encontrou uma saída para a falta de regulamentação específica, nem nos próprios princípios que enuncia, que assim se apresentam como um exercício de cinismo e hipocrisia; e, finalmente, o presidente da B SAD que vende a dignidade apenas porque, para lá dos três pontos, podiam ser subtraídos mais!

Continuo sem saber qual a razão do comportamento de quem dirige a B SAD e quais os interesses que defendeu e em nome de quê. Uma coisa sei: quero aplaudir aqui o presidente do Clube de Futebol Os Belenenses, que está a trilhar o caminho das pedras para não misturar a alma do seu clube com algo sem alma. O caminho das pedras é sofrido e cheio de suor e lágrimas. Serão lágrimas de sofrimento e alegria, bem diferentes das lágrimas do cinismo e da hipocrisia que vimos nos olhos por detrás da máscara!