A vida social do hífen
O Governo português está a falhar em algo que me parece essencial. Manda as pessoas para casa: ok. Ordena-lhes que não vão para praias e centros comerciais: ok. Fecha bares e restaurantes: ok. Encerra escolas: ok. Impede grupos superiores a duas pessoas: ok. Não deixa que a lotação dos supermercados supere os 30 por cento: ok. Incrementa o teletrabalho: ok. Deixa as pessoas passearem os seus cães na rua: ok. Coloca polícias na rua a impedir que burros-cretinos-inconscientes-egoístas atravessem, por exemplo, a Ponte 25 de Abril: ok. Mete anúncios televisivos a relembrar regras a cumprir durante a pandemia: ok. Parabeniza médicos, enfermeiros e todo o pessoal hospitalar: ok. Realiza conferências de imprensa diárias com a ministra da Saúde: ok. Tenta a todo o custo que a curva de contágios seja o menos alta possível: ok. Protege do desemprego todos os trabalhadores: ok. Permite que imigrantes e requerentes de asilo com pedidos de autorização de residência pendentes no SEF passem a estar em situação regular e a ter acesso aos mesmos direitos, incluindo apoios sociais: ok. Suspende voos de e para locais onde o coronavírus está a proliferar: ok. Estabelece um regime excecional e temporário de faltas justificadas motivadas por assistência à família: ok. Regulamenta que os trabalhadores independentes também estão abrangidos pelo adiamento de 2/3 da contribuição a pagar à Segurança Social durante os próximos 3 meses: ok. Tudo ok.
PORÉM, está a falhar naquilo que, enquanto jornalista, me parece essencial. Não está a proteger as condições de trabalho dos diferentes membros dos teclados de computador. E é simples de perceber: todas as letras, números e símbolos estão juntos num espaço de 20x30 centímetros. É contra a lei. Dou um exemplo simples: coladinho ao g, j, n e y, o h está no meio do turbilhão, tipo Nova Iorque ou Bérgamo. Mais tarde ou mais cedo, ficará infetado. O q e o w, lá em cima à esquerda, estão a dois milímetros um do outro. Se um estiver contagiado, o outro também estará. Tal como o esc e o f1. Ou o insert e o delete. Não faz sentido. A tecla de espaço parece-me assumir as funções de polícia: não deixa que o alt e o alt grd (primos direitos) se aproximem. Porém, enquanto toma conta deles, permite que c, v, b, n e m andem a fazer jogging mesmo nas suas barbas. Não é sensato. E o ª e o º encavalitados em cima um do outro? E o g e o h a quererem ir juntos ao supermercado? Nunca vi r e u a porem gel/álcool. O ç anda com máscara no rabo para quê? Quem está sem fazer nada é o bom do hífen. Vou agora cumprir as regras dos distanciamento social entre teclas e, ao mesmo tempo, dar trabalho ao bom do hífen: S-i-n-t-o s-a-u-d-a-d-e-s d-o-s m-e-u-s c-o-l-e-g-a-s d-o j-o-r-n-a-l-. Assim, ninguém se infetará. Nem as teclas, nem os jornalistas. Força, malta! Quando nos voltarmos a ver, já o 3.º filho do Reis andará na escola.