A vergonha foi de todos
ESTRANHO paradoxo, este: num momento em que os corpos ficaram em casa, mais as mentes se agitaram na procura de uma verdadeira transformação do futebol português. Se há algo de bom que esta crise trouxe foi o de ter posto em causa uma série de paradigmas e não teremos grandes dúvidas de que haverá um virar de página quando voltarmos todos à normalidade.
Foram interessantes e pertinentes as reflexões de Fernando Gomes no artigo de opinião publicado na Imprensa esta semana, porém tendo o presidente da Federação Portuguesa de Futebol pecado por tardio. Em 2016, antes de avançar para eleições, o atual líder federativo afirmava que o mandato que agora está a terminar seria «crucial para o fortalecimento do futebol nacional». Foi para as seleções, inquestionavelmente, mas não o foi para o futebol dos clubes.
Recordemos, por exemplo, o caso espanhol: apesar dos conflitos entre Liga e Federação (alimentado, também, por personalidades muito fortes à frente das respetivas instituições), seleções e clubes estão num plano semelhante. Num planalto, para usar o a forma de relevo mais usada por estes dias. Apesar das guerras palacianas entre machos alfa, a força dos dois blocos é tal que supera divergências e eleva o futebol espanhol daquele país como um corpo só - apenas só uma grande organização conseguiria não perder dinheiro com a saída do jogador-bandeira do Real Madrid, de seu nome Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro... Há, portanto, um campeonato que rivaliza com o inglês como o melhor do mundo e seleções que lutam sempre para vencer todas as competições, seja em que escalão for.
Em Portugal, pelo contrário, temos vindo a assistir ao cavar de um fosso entre o universo das seleções (FPF) e o dos clubes (Liga). À excelência de uns tem correspondido a mediocridade de outros. Em todos os planos: organização, comunicação, massa crítica, credibilidade. Não deve ser apenas Pedro Proença (não o cidadão mas o presidente da Liga Portugal) que tem de ficar envergonhado por ter sido chamado apenas à última da hora a São Bento para uma das mais importantes decisões da história do futebol profissional no País, mas também os clubes como uma orgânica, porque o gesto do primeiro-ministro, António Costa, em desconsiderar a Liga Portugal numa tarde em que se discutia, apenas, a sobrevivência de um setor, não foi para um homem, mas para um modelo que está falido.
DEMOREM ou não a chegar as mudanças estruturais (com a centralização de direitos televisivos e um novo quadro competitivo à cabeça) haja pelo menos a capacidade de capitalizar o imediato: o campeonato português podia aproveitar o cancelamento da Ligue 1 (França) para ocupar esse espaço nas grelhas televisivas até ao final da época desportiva; podia aproveitar a vantagem competitiva de, provavelmente, poder começar mais cedo que a Premier League, La Liga ou Serie A e conquistar clientes europeus, sul-americanos ou asiáticos; podia, na perspetiva mais modesta de todas, conquistar o mercado dos campeonatos europeus de segunda linha, agora que a Holanda e Bélgica também fecharam as portas. Podia, enfim, internacionaliza-se. (Se houve uma televisão alemã que equacionou compra dos direitos televisivos do campeonato da Bielorrússia para saciar a sede de futebol dos espectadores germânicos...)
PARA a que isso seja uma realidade, os clubes teriam de fazer o que nunca foi feito: unirem-se e venderem o seu produto com um todo. Nunca me esqueço de uma entrevista que li há muitos anos de um produtor da Andaluzia quando lhe perguntaram o motivo de os agricultores espanhóis terem aproveitado os fundos europeus muito melhor que os portugueses: «Cada um de nós pegou no dinheiro, comprou um trator para andar na terra e unimo-nos a outros agricultores. Já os portugueses compraram tratores mais potentes para andar na estrada e cada um ficou por sua conta.»
Se as crises são uma oportunidade, ela aí está a bater à porta.