A nossa responsabilidade
Tenho visão romântica do futebol. Ainda que profundamente industrializado e hoje diferente do original, sou dos que acha que o desporto-rei devia manter a sua essência mais primitiva, o seu objetivo primeiro: o de fazer bem às pessoas.
O futebol é um jogo e os jogos foram criados para entreter, para distrair, para divertir.
Infelizmente nem sempre é assim. Há focos de instabilidade crescentes, consubstanciados em atitudes pouco éticas, em práticas pouco claras, em momentos menos felizes. É o pecado da gula a apoderar-se do pecador.
Ignorá-los, desvalorizá-los, negligenciá-los é prestar um mau serviço ao jogo. Não é o que se espera de quem tem responsabilidades diretas ou indiretas no espetáculo.
Dizem que a reflexão é o primeiro passo para a solução. Eu concordo. Reflitamos sobre exemplos recentes:
- A tutela, que sempre conseguiu manter sensata equidistância das dores de uns e de outros, não conseguiu escapar agora a uma exposição pública, tão evitável quanto desnecessária.
-Alguns clubes continuam a achar que a melhor maneira de defender a sua casa é atacar ferozmente a do vizinho. É uma opção de consumo interno, disseminada aqui e ali por adeptos indefetíveis, de visão toldada pela paixão. O exemplo que chega dos seus pares, além-fronteiras, é totalmente distinto: por lá as mensagens trocadas são quase sempre de respeito e desportivismo, de elogio e sã rivalidade. Há a noção que as vitórias conquistam-se dentro de campo, com todas as vicissitudes inerentes ao jogo. Ser grande na conduta... dará assim tanto trabalho?
- O presidente da SAD de um clube primodivisionário teve altercação, alegadamente grave, com um seu jogador. Mais do que eventuais consequências práticas, o que resultou para o exterior foi a imagem feia de um momento demasiado censurável. Terá valido a pena?
- Em Sacavém, um jogo que devia celebrar a festa da Taça, houve incidentes infelizes, causados por adeptos que não sabem perder. A tensão foi tal que obrigou à intervenção das autoridades, tendo o seu momento alto no envio de um petardo para o relvado, que por pouco não atingiu um jogador poveiro. Para quê?
- Mais a norte, um grupo de pessoas não gostou da derrota da sua equipa e decidiu brindá-la com insultos e ofensas. Por força disso, a Académica, clube profissional, foi obrigada a abandonar o estádio do adversário cerca de uma hora mais tarde. Um dos adeptos acabou mesmo por ser detido. Porquê?
Na sua versão hardcore, o futebol mais não é do que o reflexo fiel da sociedade. E quando a sociedade permite e até alimenta um conjunto de interrogações sobre condutas e comportamentos, algo está mal. É que as pessoas tendem a seguir os exemplos de cima e se esses não forem bons, o caldo está entornado.
A verdade é que, de um modo geral, há uma gritante falta de valores, que vem em sentido descendente. Há falta de ética, falta de respeito, falta de sensatez.
Há também aparente sensação de impunidade, alguma falta de coragem, demasiado polimento institucional.
Este é um problema de fundo, transversal, social. Do nacional porreirismo vigente. Não apenas do futebol.
As gerações vindouras precisam de outras referências, de melhores referências.
Convém recordar: serão os vossos (nossos) filhos a pagar a fatura das vossas (nossas) atitudes.