A justiça que não funciona
Como podem os adeptos e os intervenientes acreditar numa justiça que é lenta, confusa e com ‘timing’ que parece cirúrgico?
A O decretar, a dois dias do clássico da segunda mão das meias-finais da Taça de Portugal, os castigos do FC Porto-Sporting de fevereiro para a Liga, o Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol (e por arrasto toda a justiça desportiva, pois o público em geral não faz grande distinção entre organismos) conseguiu aumentar os níveis de calor da partida que marca o regresso dos leões ao Porto depois das cenas deploráveis no relvado, no túnel e na garagem do Estádio do Dragão.
Pode o CD justificar que não há timing certo ou errado para tomar decisões e que está dependente do calendário da instrução, mas a verdade é que daqui resultaram comunicados e declarações de parte a parte que aumentam os índices de animosidade já de si elevados e que terão, obviamente, consequências logo à noite.
Como é habitual na justiça desportiva portuguesa, é também uma decisão dúbia do ponto de vista da efetividade para o jogo em causa (o clássico) porque permite interpretações diferentes quanto ao efeito suspensivo de eventuais recursos - como é possível que na véspera de um jogo tão importante um treinador não tenha a certeza se pode ou não contar com um jogador devido a questões legais?
Tal como no caso Palhinha, os intervenientes procuraram todos os alçapões para atingir aquilo que realmente interessa: jogar o clássico. Tal como no caso Palhinha, que só expôs ao ridículo o edifício jurídico em que assenta o futebol profissional, em vez de acabar com as dúvidas a justiça desportiva promove outra vez a chicoespetice.
O problema não está, naturalmente, em quem tenta aproveitar as saídas possíveis. Se o fazem é porque podem. Os adeptos não iriam perdoar, sequer, que os dirigentes não usassem todos os expedientes na defesa dos seus jogadores e em tornar as suas equipas mais fortes nos jogos mais importantes. O problema é outro: é um problema de fundo que não se esgota na instância X ou Y. Vários juristas defendem que o desenho atual da justiça desportiva está correto porque impede condenações populistas, produzidas no calor das emoções. Mas o que deve estar presente na consciência coletiva é algo tão simples quanto isto: a justiça só é boa se as pessoas acreditarem nela. E como podem os adeptos (mas também os intervenientes, especialmente os futebolistas) ter confiança na justiça se esta é tardia, confusa, omissa e com decisões cujo timing é tão estranho que aparenta ter tanto de cirúrgico? Todos recordamos as declarações de Rúben Amorim, a 1 de março, quando disse que não acreditava que fosse conhecido qualquer castigo até ao final do play-off de acesso ao Mundial do Catar, numa referência à presença de Pepe na Seleção. A verdade é que Portugal qualificou-se a 29 de março e o Conselho de Disciplina deduziu acusação contra Pepe e Tabata... no dia seguinte.
Apontamos sempre a Premier League como exemplo a seguir e por isso vale a pena imaginar este cenário e fazer algumas perguntas a seguir: após um Liverpool-Man. United muito tenso (sem direito a momento de solidariedade para com um atleta rival) os jogadores iniciam cenas de quase pugilato, os secretários-técnicos e diretores gerais dos dois clubes (que nem os adeptos locais sabem quem são) entram em confronto com jogadores adversários, os stewards agridem jogadores da equipa visitante, um dos senhores Glazer substituiu Ralf Rangnick na conferência de imprensa para se atirar à arbitragem de Anthony Taylor e acusar os reds de dominarem o sistema e depois é alegadamente vítima de uma tentativa de agressão nas entranhas de Anfield, inclusive do press officer que minutos antes estivera à cavaqueira com Jurgen Klopp. Questão 1: isto realmente aconteceria? Questão 2: se acontecesse, que condenações seriam proferidas? Questão 3: em quanto tempo seriam conhecidas as penas? Questão 4: os tais stewards agressores poderiam, teoricamente, voltar a Anfield sem que houvesse qualquer condenação mais de dois meses depois? Questão 5: qual seria o castigo do Liverpool por causa desses indivíduos?
Quem acompanha minimamente o fenómeno desportivo está em condições de dar estas respostas e perceber quão distantes estamos do nosso mais velho aliado.