A escrita em dia
1Dentro de algumas semanas, fatalmente, eu e todos os que aqui escrevem, vou-me confrontar com a falta de assunto, pois do nada não é possível extrair coisa alguma. Mas, até ver e recorrendo aos apontamentos, ainda há vários assuntos que dão tema para conversa mas que a urgência de outros ou a falta de espaço deixou pendentes, à espera de melhor hora ou do chamado arquivo permanente. Ei-los que ressuscitam de uma morte cancelada.
2Porém, e antes de lá chegar, há um assunto primeiro e escaldante: como vai terminar, como deve terminar, a época futebolística, agora que a UEFA adiou sem data o Europeu de selecções e deixou para cada Liga a solução do respectivo desfecho interno. No papel, as soluções possíveis são três.
Solução A: esperar que o monstro desapareça até ao Verão e aproveitar o cancelamento do Europeu para prosseguir os campeonatos até final e disputar ainda a final da Taça. Esta época iria colar praticamente com a época seguinte e os jogadores teriam não mais do que uns 15 dias de férias, mas também, embora não ideais, já teriam tido as suficientes. Os contratos a terminar em 30 de Junho prolongar-se-iam por mais um ou dois meses e o mesmo sucederia com a época de transferências. Seria, com inconvenientes, a melhor e a mais justa das soluções e a que permitiria recuperar parte dos imensos prejuízos que os clubes vão ter.
Solução B: os campeonatos eram anulados e tudo se passaria como se a época 2019/2020 nunca tivesse existido. Inútil dizer que em países como a Inglaterra, onde o Liverpool, que espera há mais de vinte anos pelo título e segue com 25 pontos de avanço sobre o Manchester City, mas também em Itália ou França, tal hipótese seria absolutamente inaceitável. E entre nós, seria um prémio caído do céu para o Aves e para o Portimonense, com o destino já praticamente traçado de descida, e um castigo insuportável para o Nacional e, sobretudo, para o Farense, à beira de consumar um notável percurso de regresso à companhia dos maiores, depois de ter descido aos infernos. Já no que toca ao título, o Benfica agradeceria a todos os anjinhos, numa situação em que estava mais perto de perder o campeonato do que de o ganhar e, principalmente, garantia assim os milhões da Liga dos Campeões, deixando o FC Porto dependente do resultado da pré-eliminatória. Para o Porto, tal solução jamais poderia ser aceite pacificamente do ponto de vista desportivo e, do ponto de vista financeiro, poderia muito bem significar simplesmente a declaração de falência. É claro que também poderia lá chegar pela via da disputa das dez jornadas que faltam, mas ao menos aí dependia de si e não de uma decisão administrativa.
Solução C: naturalmente a que mais agradava o FC Porto e sem grande controvérsia no que respeita à disputa pelos dois lugares de subida e descida, que já estão claramente encaminhados: o campeonato era declarado terminado agora e as classificações finais seriam as que ora se verificam. Não sendo - nem podendo ser, atendendo às circunstâncias - uma boa solução, seria contudo uma solução, salvo uma visão de aguda clubite, claramente mais justa do que a anterior.
E há ainda uma quarta solução que, de tão imaginativa e escandalosa, só refiro porque aqui vi escrito que era uma hipótese em que os preclaros juristas do Benfica já estariam a trabalhar no sentido de levarem aos órgãos decisores da Liga: que o campeonato fosse declarado terminado agora, mas as classificações que contariam seriam as que se verificavam, não agora, mas no final da primeira volta - quando o Benfica seguia à frente. Assim o Benfica seria declarado campeão e meteria já ao bolso, sem mais angústias, o dinheirinho da Champions. Confesso que mesmo sabendo como a imaginação dos advogados pode ser fértil, não consigo enxergar que fundamento jurídico, que doutrina, jurisprudência ou caso julgado, poderá sustentar tão delirante pretensão - a não ser a razão que sempre tem para um advogado um cliente que pode pagar bons honorários. E não esquecendo também que estamos perante um clube que no passado já deu abundantes exemplos de não se deter muito nos meios para chegar aos fins pretendidos. Este é o clube que no passado já quis ser campeão e chegar à Champions à custa do FC Porto e graças à Comissão de Disciplina da Liga, através dos meios de prova que a justiça reduziria a cinzas no apito Dourado. Este é o clube que «comprou» um jogo decisivo em campo «neutro» ao Estoril Praia, dessa forma chegando ao título e remetendo o amigo Estoril para a segunda divisão. Este é o clube que chegou a outro título mais uma vez graças à Comissão Disciplinar da Liga e à suspensão de meses dada a Hulk, por força de um suposto pontapé a um steward, transformado em «agente desportivo» e que os justiceiros da Liga conseguiram descortinar por baixo das pernas de um molhe de gente no túnel da Luz. Este é o clube que quando o Sporting estava em desintegração interna, anunciou e tentou em vão levar de borla Bruno Fernandes - enquanto que Pinto da Costa fazia exactamente o contrário, dizendo a Sousa Cintra que podia estar tranquilo porque o Porto não se iria aproveitar da situação. Este é o clube, enfim, que todos os outros clubes portugueses conhecem por estes e outros inúmeros exemplos de fair-play desportivo.
3O Expresso contou a história de um juiz do agora de má fama Tribunal da Relação de Lisboa que era (e talvez ainda seja) convidado VIP habitual do Benfica. Colega de Rui Rangel no tribunal, o juiz foi, confessadamente, assistir a «sete ou oito jogos» dos encarnados na tribuna VIP do Estádio da Luz e a duas finais europeias dos encarnados, viajando no avião fretado pelo clube, dormindo no hotel pago pelo clube, com refeições e demais mordomias pagas pelo clube. Mas não vê nisso mal algum pois, segundo diz, no avião e com idênticas regalias, também seguiam outros juízes, políticos e jornalistas. Tudo à conta do Sport Lisboa e Benfica. Pois claro: faz sentido. Lembram-se do célebre documento de trabalho da Direcção do Benfica que, inadvertidamente, caiu no domínio público e no qual se delineava uma estratégia para dominar todos os sectores considerados essenciais: arbitragem e disciplina da Liga, mas também comunicação social, banca, mundo politico e justiça? Nada acontece por acaso. Porém, ainda há mais um detalhe: o desembargador em questão foi - a notícia não especificava se antes, depois ou antes e depois das viagens e dos camarotes - membro da Comissão Disciplinar da Liga. Ah, a coincidência! Que não é nada, disse ele: «sei muito bem separar os papéis». Tanto que afirma até ter suspendido o Nuno Assis, então titular do Benfica, por seis meses (se não me engano, tratou-se de um caso de doping e não de disciplina). Na verdade, seria útil que, aproveitando este tempo morto do futebol, algum órgão de informação desportivo se dedicasse a vasculhar as decisões do juiz em causa no Conselho de Disciplina. Só para confirmar.
4De facto, os critérios do dito Conselho de Disciplina são um mistério. O FC Porto, por exemplo, levou recentemente um jogo de castigo à porta fechada (de que recorreu) porque UM adepto terá atirado UMA cadeira que acertou NUM polícia - que logo virou «agente desportivo» para o efeito. E o mesmo FC Porto foi condenado nuns milhares de euros por cânticos racistas de alguns adeptos num jogo contra o Aves, que ninguém escutou e ninguém relatou. Já no jogo V. Guimarães-FC Porto, cujos cânticos racistas de uma bancada inteira contra um jogador portista correram mundo e ainda estão por decidir pelo Conselho de Disciplina, o Vitória foi condenado em... 714 euros por outros insultos a Marega e Marchesín. Mas já os cânticos de adeptos portistas contra adeptos vitorianos e o arremesso de cadeiras por parte dos adeptos portistas, que ninguém viu, custaram ao FC Porto 1.020 euros de multa. Digam-me lá: estão a brincar, não estão? Só podem. Qual será o castigo ao Benfica pelo arremesso de tochas dos seus adeptos contra os seus próprios jogadores, no final do jogo de Setúbal? Como? Ah, não consta do relatório! Entendi.
5António Salvador promete ficar calado sobre arbitragens - ele e todo o clube - durante toda a próxima época. Dou-lhe três meses. E se for vítima de uma arbitragem como a que assaltou o FC Porto no último jogo contra o Rio Ave, onde se pode ter decidido um título de campeão, não lhe dou nem três horas. O seu apelo para que todos sigam o seu exemplo de auto-invocado fair-play - que ainda não passa de uma promessa - é muito bom para calar consciências pesadas. Come e cala: o Benfica agradece. Aliás, as tiradas de Salvador sobre o fair-play no futebol - como a que fez a propósito do roubo de Ruben Amorim pelo Sporting, esquecendo-se que havia feito o mesmo anteriormente duas vezes - assentam todas na mesma insustentável leveza das coisas que se dizem só por dizer.