A dimensão!

OPINIÃO30.09.202206:30

A importância do futebol não deve desviar-nos do essencial da vida. E muito menos cegar-nos

FUI desperto para o assunto, confesso-vos, pelo jornalista Luís Osório. Na velocidade furiosa em que a vida de cada um de nós, por vezes, se torna, por mais absurdo que nos pareça, nem sempre conseguimos acompanhar a realidade como gostaríamos, e, pior ainda, nem vemos o que até está mesmo debaixo do nosso nariz. Quando damos seriamente conta, até nos custa acreditar como fomos capazes de ignorar o que jamais pode ser ignorável.
Confesso, portanto, e creio que só me fica bem assumi-lo, que foi o jornalista Luís Osório que me levou a parar, um pouco, e a refletir sobre a verdadeira importância das coisas, ao despertar-me para o sério desafio, o profundo impacto e risco, enorme bondade e humanidade da atitude do avançado iraniano do FC Porto, Taremi, assumindo, com notável coragem, a defesa dos direitos das mulheres no seu país, na sequência da lamentável morte de Mahsa Amini, a jovem de 22 anos, oriunda do Curdistão iraniano - pertencente, pois, a um dos grupos étnicos minoritários mais oprimidos no Irão. A jovem Amini morreu, a 16 de setembro, quando estava sob custódia policial, três dias depois de ter sido detida, na capital Teerão (e alegadamente espancada), por agentes da chamada polícia da moralidade, que a acusaram de usar inadequadamente o hijab, o obrigatório véu que deve cobrir os cabelos das mulheres.
Taremi, para quem anda, porventura, mais distraído, é hoje o Cristiano Ronaldo do Irão, e correndo certamente riscos inimagináveis, tornou-se no país, por corajosa responsabilidade própria, sublinho, uma bandeira no oceano de protestos contra a morte da jovem Amini, que tem chocado o mundo ocidental, sim, mas também, e muito profundamente, a sociedade iraniana, numa revolta aparentemente sem precedentes, que já alastrou a mais de 25 províncias iranianas. Há notícia da morte de algumas dezenas mais de pessoas e a prisão de algumas centenas, como resultado desses protestos, que começaram, aliás, logo após a detenção de Mahsa Amini, quando visitava a capital do país com a família. A propósito, escreveu o prestigiado Financial Times, Amini não tinha qualquer histórico de ativismo político ou registo de participação em manifestações contra o regime político de Teerão. A morte de Amini ilustra, na verdade, a violência da polícia e a brutalidade do regime em relação, sobretudo, às mulheres e minorias no Irão.

VALE a pena recordar - e nunca será demais recordá-lo - que as mulheres no Irão têm de cobrir os cabelos e não podem usar peças curtas de roupa acima dos joelhos, calças apertadas ou jeans rasgados. A polícia da moralidade, nome pelo qual se designa a oficial Patrulha de Orientação, é responsável por vigiar o cumprimento dessas normas de vestimenta, num atentado absolutamente cruel à dignidade e à liberdade humanas.
É nesta realidade que sobressai a dimensão dos gestos de Taremi, associando-se aos protestos. Na sua página no Instagram, Taremi trocou a sua fotografia por uma imagem do território iraniano coberto de negro, e influenciou outros jogadores a seguirem-lhe o exemplo, como conta o jornalista Luís Osório no seu Postal do Dia na TSF.
Já no jogo do FC Porto com o Estoril, percebo-o agora, Taremi jogou com um punho negro, em sinal de luto e num gesto que ele sabe, bem melhor do que qualquer um de nós, que o pode colocar em risco, a ele e sua família, porque Taremi não é apenas mais um anónimo a juntar-se aos protestos, ele é, sim, a maior figura do futebol iraniano atual, e como figura de grande impacto público, os seus atos arriscam graves consequências.

NESTA loucura, nem sempre mansa, de uma vida a correr pela qual parecemos deixar-nos devorar, e nesta particular cegueira que o futebol, em Portugal, infelizmente nos vai provocando, quase se confunde a defesa de um clube, de uma equipa, de um jogo de futebol, de um resultado, com as grandes causas das nossas vidas, e devemos a nós próprios a decisão de não permitirmos que isso nos limite ou nos impeça de ver árvores sem ver a floresta. Não é, naturalmente, pela enorme dignidade e coragem de Taremi, pela dimensão humana que verdadeiramente revela, enquanto notável figura pública, nos protestos contra o regime de um país que continua a reprimir as liberdades individuais, não é por isso, repito, que Taremi não deve ser discutido. Taremi ou qualquer outro futebolista, por cá ou em qualquer parte do mundo. Mas aceitar que o futebol ganhou realmente impacto incontornável nos nossos dias só pode significar aceitarmos que o futebol continua a ser a mais importante, na verdade, mas a mais importante das coisas menos importantes da vida.
Não se trata de defender Taremi (nem qualquer outro em seu lugar) do ato de simular num jogo de futebol, mas, ainda assim, talvez fosse conveniente percebermos algumas das raízes culturais do nosso futebol para, porventura, deixarmos de olhar apenas a árvore e melhor vermos a floresta.

AINDA recentemente foi recordado, pelas novas e poderosas redes de comunicação, um vídeo de uma entrevista de Eusébio na RTP, na qual o lendário Pantera Negra confessava o pecado da simulação como forma de tentar tirar partido do engano para chegar à vitória em jogos, assim definidos por Eusébio, «que estavam difíceis».
Taremi, como bem escreveu neste jornal o diretor Vítor Serpa, comete, porventura, o pecado de se juntar à categoria de jogadores que aliam talento à capacidade para «uma boa dose de ação cénica», como tinham, pelos vistos, e apenas como exemplo, Eusébio, o maior de todos, ou o bom do Manuel Fernandes, mais o grande campeão que continua a ser Futre ou ainda, como também lembrava o Vítor Serpa, talvez o mais genial dos geniais, Diego Armando Maradona.
Todos, sobretudo os que, como nós, andam nisto há umas décadas, sabemos como essa cultura foi criando também raiz no futebol em Portugal, oriunda de uma certa casta de dirigentes e treinadores, para quem, muitas vezes, ganhar significava sobrevivência. ‘Atira-te para o chão!’, ‘faz-te ao penálti!’, ‘simula a falta!’, foram sendo sucessivos gritos de guerra na comunicação entre treinadores e jogadores, muito em especial, a partir da década de 80, e creio não andar muito longe da verdade, e daí que tenha ganho dimensão essa cultura de engano que, no fundo, encontra igualmente alicerces na própria cultura social do nosso quotidiano. Ou não tivéssemos tornado famosa e tão popular a expressão (com fama e proveito) do chico esperto.
Hoje, para impedir que essa cultura floresça, ou, no mínimo, permaneça, passou a existir o olhar (que se espera rigoroso e implacável) da videoarbitragem. E é, agora, ao tecnológico VAR que compete impedir que os jogadores de futebol possam continuar a tirar benefício da simulação. Infelizmente, e por enquanto, o olhar do VAR não se estende ainda a outros lances (além dos penáltis e cartões vermelhos) nos quais a simulação pode igualmente desvirtuar o jogo, como, por exemplo, quando a falta é cometida por um jogador, mas é o adversário que vê o cartão amarelo que lhe abre a porta da exclusão se o duplicar.

Oque Taremi não dissimulou foi o nobre, relevante e verdadeiramente impactante gesto de apoio aos protestos, no seu país natal, pela morte (tão indigna) da infeliz jovem Mahsa Amini. Taremi podia ter-se escondido. Mas não. Foi gigante. Bem maior do que muitos dos que falam tanto parecendo saber tão pouco, e sobretudo dos que, porventura, nunca terão o caráter e a coragem de dar o peito às balas na defesa de princípios genuinamente mais importantes na vida humana.
O futebol deve preencher-nos, divertir-nos, emocionar-nos, empolgar-nos, fascinar-nos; mas não deveria cegar-nos. E cega-nos!

COMO sempre me habituei a ouvir de pequeno, muitas vezes sem o compreender plenamente, de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento. Esta semana, no futebol, compreendi, afinal, melhor que nunca o significado do provérbio tão popularizado entre nós. Muitas razões nos assistirão, como críticos, e como sempre, para chamar à discussão escolhas, decisões, estratégias, até discursos, de jogadores ou selecionador, que, na verdade (e não lhe ficou nada bem), não tinha necessidade de dar aquela resposta do «tenho contrato até 2024».
Não me parece, porém, que se possa também ignorar como um jogo de futebol pode, igualmente, ter um lado de infelicidade por vezes tão surpreendente como, até, cruel. Sim, devemos admitir, desta vez, ter sido mais cruel do que surpreendente, mas a verdade é que, sem querer passar qualquer esponja sobre os pecados (que os houve, evidentemente) da equipa portuguesa e seu principal mentor,  muito do que me ficou do jogo foi a grande exibição do guarda-redes espanhol. E isso tem de explicar alguma coisa. Ou o jogo não é... um jogo?!