A diáspora dourada
De quatro em quatro anos, aí temos a liturgia do Campeonato planetário. Desta vez na Rússia. Durante mais de um mês vai ser um fartar, futebolagem entre jogos a toda a hora, reportagens até dizer basta, conferências de imprensa por tudo e por nada, filmagens de excitantes treinos, entrevistas, retrospectivas e prognósticos omnipresentes, detalhes patetas sobre alimentação, penteados, superstições, tatuagens e outros adereços.
Graças ao milagroso controlo remoto, vou usar sem parcimónia o meu direito de premir um botãozinho com direito ao zapping televisivo. Porque, francamente, o que é que interessam o pequeno-almoço dos jogadores, o passeio pelas imediações do hotel, a escova de dentes usada ou a que horas se deitam os craques? Ou os artistas transformados em ídolos inacessíveis ou heróis a imitar e quase endeusados? Ou a política a aproveitar-se do futebol (enquanto ganhamos) com o corrupio de altas entidades entre cá e lá?
Com o Campeonato do Mundo vem também ao de cima a verdadeira hierarquia do mundo do futebol: ricos, remediados, pobres e abaixo do limiar da pobreza. Destes últimos jamais rezará a história destes torneios. Quanto aos ricos, trata-se de uma minoria muito minoritária.
O primeiro Mundial de que me lembro foi o realizado na Suécia, em 1958. Não porque o tenha visto na televisão, que era coisa que ainda não existia, mas porque já lia a jovem A BOLA e a revista Sport Ilustrado e me interessava pela geografia. Recordo-me da final ganha pelo Brasil aos anfitriões (primeiro título canarinho) por 5-2 e do despontar de um ainda quase desconhecido Edson Arantes de Nascimento transformado no genial Pelé aos 17 anos de idade. E da circunstância jamais repetida de na fase final (então com 16 equipas) estarem todas as selecções do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte)
A nível de transmissões directas só em 1966 e a preto e branco vi um Mundial: o de Inglaterra, onde vibrei com a nossa selecção e Eusébio, e onde chorei desalmadamente naquela meia-final ingrata contra os ingleses que haveriam de vencer a Alemanha com um golo que, ainda hoje, não sabemos se a bola entrou ou não na baliza.
Este campeonato de 2018 tem uma saborosa característica: a de entramos como campeões europeus. Não que isso dê alguma vantagem objectiva, mas porque somos olhados com o respeito que a nossa selecção merece. E se é certo que não somos os favoritos (já não éramos há dois anos no Europeu), sonhar com o título mundial não é de todo descabido porque esta competição é o Europeu + Brasil + Argentina (e pouco mais). Aliás, a fazer fé no ranking, Portugal (4.º lugar), a seguir à Alemanha (1.º), Brasil (2.º) e Bélgica (3.º) está bem posicionado e acima das sempre consideradas favoritas Argentina, França e Espanha.
Aqui manifesto o meu gosto e desejo: se não formos nós a ganhar, pois que ganhe o Brasil. Se não for o Brasil, que seja então a pátria do futebol-espectáculo que é a Inglaterra. Não estando Portugal e o Brasil, torço sempre pela Inglaterra. Seja a selecção, sejam clubes! E se não for a pátria de Shakespeare, então que seja um país africano que é para irritar a UEFA! Não deixo, porém, de ter alguma simpatia pela Argentina e Alemanha (já que a Itália não está). Ao contrário, há selecções que eu não quero que vençam: a França, em primeiro lugar e a Espanha, em segundo.
Tenho pena de não participarem na competição duas selecções que muito aprecio: a laranja Holanda e a squadra azzurra italiana, além do mais porque são os equipamentos mais bonitos (a par do da Inglaterra). Também o antigamente temido conjunto da Europa Central (República Checa, antes Checoslováquia, Hungria, Roménia e Bulgária) não está representado.
Arrisco dizer que vai haver alguns países que surpreenderão positivamente. Quais? Prognostico quatro: Bélgica, Egipto, México e Sérvia. E, já agora, tenho o palpite de três selecções que serão a desilusão: desde logo a Rússia que joga muito pouco, o Uruguai que é uma equipa a precisar de renovação geracional e a Colômbia que, em geral, falha sempre nas grandes competições.
Quanto ás arbitragens, fico aliviado com a ausência (merecida) de lusos apitos, mas desconfio dos latino-americanos.
Com base na elencagem em A BOLA de todos os conjuntos de 23 atletas dos 32 países concorrentes, pus-me a fazer algumas contas. Por exemplo:
- Há apenas uma selecção que é composta na sua totalidade por jogadores que jogam no país (a Inglaterra) e outra coisa não seria de esperar da mátria deste desporto;
- Depois, há só mais 5 selecções com mais jogadores a jogarem no país do que fora: Rússia (só 2 jogam fora do país), Arábia Saudita (3 expatriados), Espanha (6), Alemanha (8) e Coreia do Sul ela por ela (12 que lá jogam e 11 que jogam fora).
- Todas as outras 28 selecções vão pescar mais além-fronteiras do que internamente, assim evidenciando a magnitude da globalização planetária deste desporto. Começando pela França e Irão (com 9 em 23 jogadores a jogar no país), México, Egipto e Japão (8 em 23), Costa Rica e Tunísia (6 em 23).
- A seguir, vêm os residuais, nos quais se encontra Portugal com 5 resistentes (até ver…), Peru também com 5, Polónia com 4, Austrália, Dinamarca, Sérvia, Panamá, Colômbia e, imagine-se, Argentina e Brasil (assim se compreende que o Brasileirão nem sequer seja interrompido) com 3, Uruguai, Marrocos e Croácia com 2, Islândia, Nigéria e surpreendentemente a Suíça só com 1. Duas selecções estão nos antípodas da Inglaterra: são constituídas apenas por jogadores que jogam fora do país: o Senegal e, para surpresa minha, a Suécia!
- Em suma, apenas 207 em 736 convocados (ou seja, em 28%) os jogadores seleccionados jogam no seu próprio país! Os outros 529 (72%) são emigrantes, a maior parte dos quais constituindo uma diáspora de luxo.
- Por clubes representados, o campeoníssimo é o Al Hilal da Arábia Saudita, para onde agora vai Jorge Jesus, que quase constitui a selecção saudita com 17 jogadores. Seguem-se os clubes da tabela seguinte, que fala pela concentração hegemónica do futebol, fornecendo 15% dos jogadores do Mundial!
Certamente a Juventus e Nápoles teriam mais jogadores no Mundial se a Itália lá estivesse. A seguir temos o Sporting (com 6 jogadores, já não contando com Rui Patrício, mas ainda com os 3 jogadores que na segunda-feira rescindiram), bem como o egípcio Al Ahly. Já com 5 vem, entre outros, o Benfica, não contando com o peruano André Carrillo e o recém-contratado nigeriano Ebuehi. O FC Porto tem 4, já descontando Ricardo Pereira, entretanto transferido para Inglaterra. Há ainda um jogador do Vitória de Guimarães (Hurtado, pelo Peru) e do Marítimo (Amir Abedzadeh, pelo Irão). Já agora, se e quando jogarem atletas do Benfica, que o façam com categoria e subam a parada das transferências. Dinheirinho em caixa para o meu clube é sempre bem-vindo!