A cultura
Enquanto não formos capazes de reconhecer não seremos capazes de mudar!
MAIS justa ou mais injustamente, durante, sobretudo, as décadas de 80 e 90, o futebol português ganhou fama na Europa por muito mais do que apenas boas razões. É verdade que já tínhamos grandes equipas, grandes jogadores, grandes treinadores, impressionávamos pela qualidade do jogo, em cinco anos (entre 87 e 91) atingimos, por exemplo, três finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus (FC Porto, uma, e ganha, e Benfica, duas e perdidas) e a Seleção portuguesa meteu a cabeça de fora e chegou a duas importantes fases finais - Euro-84 e Mundial-86.
Mas tal como o futebol inglês ficou terrivelmente marcado pelo hooliganismo, o que também chegou a marcar profundamente o futebol português foi uma certa e inegável imagem de mau comportamento disciplinar e uma velha tendência para o truque, para a matreirice e para o engano, muito mal vista na mais poderosa e desenvolvida Europa e nos mais poderosos e desenvolvidos países europeus.
Durante muitos anos, fomos inegavelmente vistos como uma espécie de os maus rapazes que jogavam bem. Uma questão, evidentemente, de cultura.
Sobretudo até 2002, essa imagem não nos largou, pelo contrário, agravou-se com os acontecimentos no Euro-2000 e no Mundial-2002. Ainda hoje somos capazes de nos lembrar e continuar a discutir o penálti do Abel Xavier, mas já não nos dá jeito nenhum recordar o que sucedeu nesse mesmo jogo com os franceses, das meias-finais do Euro-2000, depois do árbitro assinalar o penálti que fatalmente nos eliminou. Uma confusão das antigas.
O mesmo no Mundial-2002, quando acontecimentos que hoje seremos todos capazes de lamentar nos deixaram com mais um fortíssimo carimbo nesse passaporte de episódios negativos a que o futebol português ia, infelizmente, ficando associado.
A FIFA não gostava de nos ver naqueles propósitos, a UEFA também não, e os árbitros internacionais muito menos.
Somos o que somos; já fomos muito pior do que somos; mas continuamos, como se tem visto, nomeadamente esta época na nossa Liga, a dar péssimos exemplos do que não deve suceder num espetáculo profissional de futebol. E esses exemplos, que chegam evidentemente lá fora, a toda a gente e também aos árbitros internacionais, trazem, depois, uma fatura.
Quando pensamos (ou julgamos) que os árbitros no estrangeiro protegem os mais fortes, talvez devêssemos questionar se não estarão, porventura, a proteger, sim, um tipo de comportamento e uma certa cultura de espetáculo.
Os árbitros também fazem, naturalmente, o trabalho de casa quando recebem a nomeação. Não são apenas os treinadores que analisam tudo o que diz respeito ao jogo que vão fazer. Os árbitros também. Presumo que estudem equipas, jogadores, treinadores, bancos, comportamentos, palavras, hábitos, e saberão perfeitamente (ou julgam que sabem) o que vão encontrar.
Não podemos, nem devemos, pensar que não se sabe lá fora o que se passa cá em casa. Claro que se sabe. Sabe-se tudo. A fama tem sempre um preço. Mas nem sempre o melhor!
Esta nossa cultura, este nosso tipo de comportamento, a facilidade com que partimos, por exemplo, para o insulto e para a ofensa, a tendência para perdermos a cabeça - justificando tudo, incompreensivelmente, com a paixão pelo jogo e o calor do momento - e os maus hábitos adquiridos no nosso futebol, onde tudo se passa como se nada se passasse, deixa-nos ainda muitas vezes de calças na mão quando se trata de jogar na Europa os grandes jogos, nos grandes estádios, nos melhores relvados, com a melhor organização e os melhores árbitros.
Não sou, sequer, eu que o digo, nem é, num certo sentido, sequer uma opinião, é o que diz o histórico, é o que dizem os resultados: a equipa do FC Porto continua a ser a única equipa portuguesa com verdadeira dimensão europeia e verdadeira dimensão de Liga dos Campeões, a mais importante competição de clubes do mundo. E não há seguramente por essa Europa fora quem não respeite essa dimensão.
Mas, no plano do comportamento e da cultura, o problema é outro e tem que ver com a fama que também este FC Porto vai acumulando lá fora por aquilo que faz cá dentro.
A agitação constante no banco da equipa, o visível exercício de pressão que é feito de fora para dentro do jogo, pelos jogadores suplentes, pelo médico, pelo diretor, enfim (no banco do FC Porto, na verdade, onde vai um, parece que vão mesmo todos…), a atitude agressiva e reincidente do treinador Sérgio Conceição - que só esta época já foi expulso por três vezes e fez tudo o que não devia para se pegar (e de que maneira) com Carlos Carvalhal, Jorge Jesus e Paulo Sérgio (dos que me lembro, assim de repente), é, por junto e atacado, um quadro que não beneficia o FC Porto quando chega a hora do palco europeu.
Talvez tenha sido apenas pela fama que Sérgio Conceição viu o cartão amarelo no FC Porto-Chelsea da primeira mão. Conceição limitou-se a tocar a bola quando ela já estava fora do terreno de jogo, nada que não façam tantos e tantos treinadores, e em circunstâncias absolutamente normais, parece-me que o árbitro não teria qualquer razão para lhe mostrar o cartão amarelo. É, apenas, o que me parece. E nesse sentido, creio que o árbitro decidiu mostrar o amarelo a Conceição para o pôr em sentido e lhe impor limites. Na Europa, Sérgio Conceição sabe que não pode pisar o risco como pisa em Portugal. Sabe Sérgio Conceição e sabem todos os que vivem nos bons costumes do futebol desta nossa paróquia. E temos mesmo de parar de justificar tudo com o calor do jogo, as emoções à flor da pele, a intensidade com que vivemos o momento. Em muitos casos, talvez na maioria dos casos, não é nada disso.
Não sabemos é lidar com a frustração. E somos culturalmente o que somos. Gritamos, gesticulamos, insultamos, ofendemos. Num campo de futebol como no trânsito, ao mais pequeno sinal de conflito, seja qual for a circunstância.
Rúben Amorim, por exemplo, já foi expulso esta época por quatro vezes. Terá sido sempre por culpa dos árbitros?
Podemos admitir (tal como sucederá com Sérgio Conceição) que nem sempre Rúben tenha feito o suficiente para merecer a expulsão, mas, imaginando como são os árbitros, quando Amorim não faz, paga pelas vezes em que faz. Se for expulso por protestar muito, quando protesta pouco é expulso na mesma para evitar que proteste muito. Se assim for, o melhor é não protestar. Ou julgarão Amorim, Conceição e todos os outros, que quanto mais protestarem mais ganham?
O inacreditável comportamento que o treinador do Rio Ave, Miguel Cardoso, exibiu, à frente do País - e já estou como o meu bom amigo Vítor Manuel, que nem queria acreditar no que estava a ver… - deveria ser a última gota de água!
Confesso que já nem sei o que foi pior: se o que Miguel Cardoso fez, se o que Miguel Cardoso disse depois de fazer o que fez.
Levou, em todo o caso, a Liga portuguesa a bater no fundo, confirmando o inaceitável: que são, muitas vezes, os treinadores a dar o pior dos exemplos.
Talvez todos os que vivem as emoções à flor, não da pele, mas da relva, achem que no futebol português vale mesmo tudo e, portanto, podem comportar-se como bem entenderem que nunca vão ser exemplarmente castigados. Têm razão.
Enquanto o castigo para cenas como as que vimos agora no Bessa com Miguel Cardoso, ou entre Sérgios (Conceição e Paulo) em Portimão, para referir apenas (maus) exemplos, não for realmente severo, nenhum responsável do futebol português pode também queixar-se.
Queixamo-nos apenas nós, os que pagam para ver bons espetáculos. Mas em vão!
Quando vemos o que já vimos esta época na Liga, o futebol português dá realmente o pior dos ares de terceiro mundo e dá vergonhosa imagem de comportamentos que já praticamente não se usam em nenhuma das grandes Ligas europeias - e já quase nem se usam em nenhuma das mais pequenas.
Já aqui o escrevi e volto a sublinhar, no caso de Sérgio Conceição. Ele é um grande treinador de futebol que só torna menor a sua dimensão profissional com gestos e atitudes como as que tem protagonizado esta época em excesso.
Podemos reconhecer que o seu talento como treinador será diretamente proporcional ao mau feitio. E isso nem seria um problema se o mau feitio não o fizesse pisar tantas vezes o risco. Mas faz. E isso é um problema.
O que quer o futebol português: fama de gente indisciplinada ou apenas o proveito da grande capacidade e do inegável talento?