Terreiro do Paço, em Lisboa
Terreiro do Paço, em Lisboa. Foto: A BOLA

A crónica que não planeei escrever

OPINIÃO29.04.202504:15

As sociedades modernas parecem estar afetadas por esse vírus terrível, o do radicalismo sem sentido, perdendo capacidade para refletir, dialogar e convergir com moderação e elevação

Confesso que não era sobre apagões, corridas aos supermercados e encerramento de postos de combustível que pretendia escrever hoje. O campeonato está ao rubro, faltam três jogos para o final da época e está ainda muito por definir, quer na divisão maior do futebol português, quer em muitos outros escalões.

Mas a súbita alteração de quotidiano que impactou fortemente as nossas rotinas e hábitos deste início de semana não pode deixar de merecer aqui a minha atenção. Uma das razões é a de que à hora que agora vos escrevo - 15H42 de 2ª feira - não saber sequer se esta crónica chegará à redação de A BOLA ou se será publicada esta 3ª feira, como sempre foi nos últimos nove anos.

A pandemia já nos tinha ensinado que há fatores extraordinários que podem influenciar profundamente a forma como agimos e reagimos, como vivemos e coabitamos uns com os outros, mas bastou um problema elétrico (falo do que ouvi na rádio - e sim, a rádio voltou a ter a importância que nunca devia ter perdido!!) para que se instalasse um pequeno caos social.

Foi evidente para mim que esta situação passageira colocou nas pessoas um stress que não estão habituadas a sentir. No meio da quebra quase total de comunicações, de falhas constantes na internet, da ausência total de eletricidade ou do comprometimento de serviços e atividades importantes, é a incerteza que apoquenta a maioria. Nunca o pão, o leite, a gasolina ou a água (que não falhou até agora) foram tão valiosos.

Esse receio de que tudo isto possa arrastar-se por mais do que um ou dois dia ativou em nós o modo bunker, o que é perfeitamente compreensível: quem tem filhos e familiares para cuidar e proteger, percebe que mais vale prevenir para não remediar.

No meio desta pequena insegurança conseguimos manter a racionalidade porque, lá no fundo, estamos seguros que nada disto é grave e que passará rapidamente. Mas a verdade é que esta ausência temporária de normalidade é um novo teste à nossa capacidade de sobrevivência e adaptação a uma realidade alternativa. Felizmente para nós, resolve-se rapidamente (espero eu).

Mas infelizmente para muitas outras pessoas, estas são as circunstâncias do seu dia a dia. Há em muitos cantinhos deste planeta gente que vive em sobressalto permanente. Gente que adormece e acorda com fome, com sede e em condições de vida terríveis, sem cuidados médicos ou garantias de segurança. Gente que passa uma vida inteira exposta a doenças, a exploração de terceiros ou às mãos de criminosos sem escrúpulos que criam guerras e conflitos em nome sabe Deus do quê. Gente que nasce e morre numa pobreza impensável, que ninguém devia ter que suportar. O nosso anormal durará umas horas ou pouco mais e já causou os estragos que causou. Conseguem imaginar o que seria viver diariamente em zonas afetadas por tanta desgraça e flagelo? Somos uns sortudos, não esqueçamos.

Esta diferença abismal, entre uns e outros, leva-me de novo à questão da polarização, essa tendência atual, que é a de se extremar tudo o que é discussão importante, que pressupõe ponderação, sensatez e racionalidade. As sociedades modernas parecem estar afetadas por esse vírus terrível, o do radicalismo sem sentido, perdendo capacidade para refletir, dialogar e convergir com moderação e elevação.

Se és liberal, se defendes igualdade de direitos, se aceitas os outros tal como são, corres o risco de ser catalogado como esquerdalha. Se és conservador, se pensas de forma mais fechada, se tens visão mais antiquada, és carimbado de fascista. Pelo meio, violência verbal e física, mentiras, exageros e demasiada desinformação.

Perdeu-se capacidade de diálogo. Perdeu-se o respeito pelas opiniões diferentes. Deixamos de ser seres pensantes para sermos alguém que odeia, castiga e agride o que é diferente.

São tempos muito perigosos, estes. Convém aproveitar esta maré analógica para pensarmos bem que caminho queremos seguir. Este só leva ao triunfo dos maus.