A coerência de Sérgio Conceição

OPINIÃO02.09.202306:30

Voltou a demonstrar que ‘não se esconde’ quando se impõe defender a sua equipa

RECENTEMENTE, Sérgio Conceição, treinador profissional do Futebol Clube do Porto demonstrou ser coerente. Já o sabíamos quanto não está disponível para pactuar com o que, em sua opinião, a arbitragem por vezes prejudica os interesses da sua equipa. Também agora assim se manifestou quando considerou que a administração do clube e respetiva direção desportiva, ultrapassaram a respetiva área executiva e operacional de decisão. Razão porque recusou ser o último a saber da contratação de João Moutinho, quando tudo apontava que aquela contratação estava de um ponto de vista administrativo absolutamente concretizada. 

A imagem pública de um treinador como Sérgio Conceição torna-se por vezes controversa. Mas merece a admiração daqueles que, como eu, sempre pugnaram pela defesa do interesse coletivo. Nomeadamente e ao contrário do que por vezes leio e ouço em relação a Sérgio Conceição quando, se necessário e contra tudo e contra todos, mais uma vez demonstrou que ‘não se esconde’ quando se impõe defender a sua equipa, os seus atletas e o seu clube.

Nos dias que passam, ser treinador continua a não ter entre nós a correspondência da importância do respetivo desempenho sócio desportivo. Por questões de índole cultural (secundarização de tudo o que diga respeito ao corpo e ao movimento, com inerente sobrevalorização do espírito e do intelectual), nem sempre os treinadores têm conseguido obstar a que a sociedade os dimensione como cidadãos de segunda categoria.

No entanto, a simples observação da realidade desportiva demonstra cabalmente que, ao contrário dessa tese pouco abonatória da pessoa e do profissional treinador, as características pessoais dos treinadores não diferem da dos professores, dos homens de negócios, etc.; afinal, a sua atuação profissional não tem a ver com aspetos pessoais, mas sim com o enquadramento social em que decorre a sua atividade.

O desempenho profissional dos treinadores apresenta, relativamente às restantes profissões, uma enorme diferença, expressa pela constante exposição pública, pelas exigências permanentes de resultados positivos, pelo carácter imprevisível da competição desportiva e as difíceis interações relacionais com dirigentes, atletas, árbitros, adeptos, jornalistas, patrocinadores, agentes de jogadores, etc. 

OS dirigentes esperam resultados. Os atletas pedem compreensão para as suas necessidades de afirmação. Os árbitros solicitam o reconhecimento da sua autoridade. Os adeptos pretendem ser ouvidos e adulam ou antagonizam o trabalho dos treinadores ao sabor de vitórias ou derrotas. Os jornalistas exigem atenção e disponibilidade permanente. Os patrocinadores não resistem por vezes a associar o poder do seu dinheiro à possibilidade de mandarem ‘em tudo e em todos’. Os agentes dos jogadores interferem cada vez mais no dia a dia do treinador, procurando influenciar na defesa dos interesses particulares dos seus representados. 

Uma diversificada e constante pressão que aqui e ali desestabiliza naturalmente alguns treinadores. Exceção óbvia relativamente ao exemplo de Sérgio Conceição cuja autoridade reconhecida lhe permitiu impor-se aos que tentaram ultrapassá-lo.

Ser treinador exige conhecimentos e requer experiências que ultrapassam as aquisições de uma carreira de atleta. Um excelente atleta, nem sempre terá a garantia de possuir capacidade para ensinar e, muito menos, a de ser capaz de criar climas de trabalho próprios para a aprendizagem ou o treino. A experiência do atleta, é importante, mas para ser treinador, para além da lógica do jogo e dos seus elementos, torna-se fundamental que domine a pedagogia do seu ensino e a complexidade do comportamento humano.  

A função de treinador implica a tomada de decisões, organizadas com base em indicadores e segundo critérios que obedecem a uma certa ordem e em diferentes domínios. Organização do treino, liderança, estilo e formas de comunicação com os jogadores, dirigentes, árbitros, jornalistas, etc., opções estratégicas e táticas decorrentes da observação e análise do jogo, gestão das pressões contidas na competição, controle da capacidade de concentração e emoções, etc. Além dos imprescindíveis conhecimentos técnico-táticos e da possível capacidade de demonstrar corretamente as técnicas, ser treinador exige um conhecimento multidisciplinar e o desenvolvimento de um conjunto de habilidades pedagógicas próprias no âmbito das competências de ensino.

Mesmo quando a qualidade do candidato a treinador revela uma informação e formação acima da média, ele tem de ser capaz de provocar, através da sua ação, o interesse e motivação dos que aprendem e treinam, pois não há progresso nem êxitos possíveis sem a participação motivada dos atletas. Tal como gerir as suas emoções e saber como potenciar, a cada momento, as emoções daqueles com quem trabalha.

A profissão de treinador, tem de ser exercida de modo estimulante para a autonomia futura dos atletas sob a sua responsabilidade, acreditando nas capacidades daqueles que fazem parte do seu grupo de trabalho e devolvendo-lhes competências.

Cada treinador, deve atuar de acordo com as suas características e limitações, sem nunca esquecer a responsabilidade que lhe está atribuída quanto à formação social e emocional dos atletas com quem trabalha e à melhoria gradual destes, no âmbito dos conhecimentos relativos à modalidade a que se dedicam. Os resultados provenientes da intervenção do treinador, têm profundos reflexos sociais pela influência educativa (ou deseducativa!), que exercem nos jovens e nos adultos, quer sejam praticantes ou adeptos. 

LOGICAMENTE, não existem treinadores ideais, tipo super-homem de banda desenhada, ‘que sabe tudo’ e ‘nada o perturba’, ‘homem sem defeitos’ e comportamentos sociais e desportivos sempre irrepreensivelmente modelares. Tais modelos não passam de produtos imaginários criados e alimentados em enquadramentos sociais alienatórios da realidade.

O treinador ideal, nem mesmo no domínio da utopia poderá ser descrito, não existindo um perfil único de treinador, mas sim uma série infindável deles, consoante os contextos em que exercem funções e suas respetivas necessidades de intervenção.

Mas atenção! Ao treinador dos dias de hoje é lhe exigido um desempenho, onde, mais do que atuar de modo autoritário, ele veja a sua autoridade reconhecida, conhecendo-se a si próprio e às necessidades de realização, autoestima e segurança social que, como qualquer outro cidadão, norteiam a sua atividade. Desenvolvendo a sua ação com o objetivo natural de ter sucesso (realização), ‘gostando de si próprio’, necessitando, para isso de pertencer a um grupo profissional socialmente dignificado.

Ao treinador é exigido ser capaz de inspirar confiança. O que é que isso significa? Saber ser competente (saber da modalidade, claro!), mas também, e acima de tudo, entender a importância da área comportamental. Necessitam os treinadores de ser verdadeiros especialistas na arte de observar (de modo seletivo) as reações comportamentais dos jogadores, da sua equipa técnica, dos dirigentes, dos adeptos, dos jornalistas, etc. As suas atitudes e comportamentos ao serviço da equipa impõem-lhe, acima de tudo, a perceção que não podem enganar ou mentir àqueles que consigo trabalham ou enquadram a sua ação.

No fundo, devem ser honestos nas palavras (não mentir!) e coerentes nas suas ações, manifestando-se continuadamente preocupados com os outros. Só são de facto reconhecidamente treinadores quando se desprendem do seu ego e se libertam do ‘umbigo’. 

SER um ‘bom treinador’ não é a questão central. Mas sim que os atletas e as equipas com quem trabalham sejam cada vez melhores. Enquanto pensarem mais em si próprios e nos seus interesses e afirmação pessoal (acreditem!), não são assim tão ‘bons treinadores’. Melhorar as competências dos jogadores e o valor competitivo global das equipas e dos clubes onde trabalham, são as suas responsabilidades principais.  Respeitando naturalmente as diferenças entre o significado de ganhar no Alto Rendimento desportivo ou no processo de formação de jogadores. 

Que modelo de atleta devem os treinadores buscar? Não basta que sejam excelentes atletas de um ponto de vista físico e atlético. Necessitam revelar capacidades de persistência, serem resistentes à frustração, à dor, ao erro, à fadiga, etc. Ambiciosos e com sentido de carreira, saberem onde querem chegar, quais os objetivos que perseguem.

Mas não só! O treinador tem ainda de ser um comunicador. Possuir empatia quanto baste para conseguir através do seu processo de comunicação com os outros, motivá-los, conduzi-los a uma superação constante. Mais importante que aquilo que sabemos, é o que somos capazes de ensinar através da comunicação que estabelecemos com aqueles com quem trabalhamos.

Sem nunca esquecer as palavras sábias de Harvey Thomas, especialista de comunicação: «Se tu disseste e eles não te ouviram, foi porque tu não disseste».

Pertence ao treinador garantir a compreensão daquilo que diz. Tal como saber ouvir. Utilizando mesmo por vezes o silêncio como forma de comunicar; citando um provérbio chinês, «se a palavra que vais dizer não é mais bela que o silêncio, cala-te!».

O que significa que a psicolinguística do silêncio é tão rica como a da linguagem e que em todos os momentos que envolvem comunicação, a infinita variedade de silêncios revela-se plena de sentido.