A arte das inaugurações
Sátira política. Histórias do Senhor Kraus neste intervalo. O Chefe e os seus Auxiliares.
Inaugurações (1)
1 - O Chefe estava nervoso. Andava de um lado para o outro............................... - Nada para inaugurar, nada! Estes homens não fizeram uma única cadeira. Não há nada para inaugurar!
- Nem uma agulha, Chefe.
- Nem uma agulha para inaugurar - murmurou o outro Auxiliar. - Nem uma agulhinha!
- Nem uma assim - insistiu o primeiro Auxiliar, juntando, expressivamente, o polegar e o indicador - Nem uma assim! Assim!
- Nada!
Os dois Auxiliares estavam como que hipnotizados por aquela lengalenga.
- Nem o buraco de uma agulha se fez!
- Nada. Nem um buraco.
- Nem metade de uma agulha.
- Nem metade do buraco de uma agulha.
- Nada, nada!
- Basta! - gritou o Chefe - Já não vos posso ouvir!
- Nós calamo-nos, Chefe.
- Tive uma ideia - exclamou, subitamente, o primeiro Auxiliar.
- Bravo!
- A minha ideia é a seguinte: o Chefe já alguma vez veio a esta terra tão desagradável, friorenta, deserta, nojenta até, sob certo ponto de vista, mas tão prometedora?
- Eu? Claro que não. Você é louco?
- Ora ai está!
- O que é que aí está?!
- Podemos inaugurar a sua presença nesta terra. É a primeira vez que o Chefe vem a este espaço. Isso não é extraordinário?
- Começo a gostar de ideia. E faz sentido.
- Nunca mais se fará nada de tão importante nesta terra!
- Não seja exagerado - murmurou o Chefe, enquanto quase se afogava de contentamento no seu próprio queixo.
- Talvez seja então de um de nós inaugurar a presença de Vossa Excelência nesta terra, Chefe. Que lhe parece?
- Eu mesmo vou inaugurar a minha presença nesta terra!!
- Não é fácil - disseram os dois Auxiliares em coro. - Inaugurar e ser a coisa inaugurada ao mesmo tempo...
Foi então que, levantando vigorosamente o queixo em direcção ao céu, o Chefe respondeu, de uma vez:
- Sou um homem que gosta de enfrentar as dificuldades.
E era, de facto.
Inaugurações (2)
2- Chefe, tudo o que ocupa volume já foi inaugurado nesta santa terra onde viemos cair!..................Mais uma vez o desalento. Olhavam em redor: tudo já inaugurado.
Algumas coisas estavam mesmo inauguradas há séculos.
- Este castelo...?
- Não. É anterior à chegada de vossa Excelência...
- Se tudo o que nesta terra ocupa volume já foi inaugurado - disse o Chefe - então temos de pensar nas coisas que não ocupam volume!
- Não me tinha lembrado disso, Chefe.
- Eu por acaso tinha-me lembrado disso - exclamou o outro Auxiliar - mas depois esqueci-me.
- Pois bem - continuou o Chefe, ignorando os murmúrios esforçados dos dois Auxiliares - apareceu aqui uma ideia!
- Onde, Chefe?!
O Chefe continuou.
- A minha ideia é a seguinte: alguma vez nesta terra ocorreu este dia de hoje?
- O Chefe está a perguntar se alguma vez, antes de hoje, existiu o hoje?
- Nesta terra, refiro-me apenas a esta terra - esclareceu o Chefe.
- Nunca, Chefe. É a primeira vez que este dia vem a esta terra.
- Lá está!
- O quê, Chefe?
- Podemos inaugurar este dia nesta terra. Eu inauguro o dia de hoje...
- É uma ideia impressionante, Chefe.
- Em vez de inaugurar espaços, inaugurar tempos, eis uma ideia importante, sem dúvida...
O Chefe fez uma pausa. Instalou-se o silêncio. Ele recomeçou:
- ... porém, fazer apenas uma inauguração, o dia de hoje, sabe-me a pouco. Quanto tempo ficamos nesta terra, excelentíssimos auxiliares?
- No programa está previsto ficarmos duas horas.
- Duas horas? Isso dá quantos quartos de hora?
- Oito, Chefe. Quatro quartos de hora na primeira hora, mais quatro quartos de hora na segunda hora. Oito no total.
- Pois bem, vamos inaugurar não o dia de hoje, mas os quartos de hora. De quinze em quinze minutos inauguramos os quinze minutos seguintes. Oito inaugurações.
Os dois Auxiliares estavam mudos.
- Era então isso que tinha em mente quando referiu a possibilidade de inaugurarmos coisas que não tivessem volume, que não ocupassem espaço...
- No fundo, inaugurar coisas que não sejam visíveis - esclareceu o Chefe.
- Exactamente.
- Inaugurar o invisível! Oh, Chefe, que ideia!