A arte das inaugurações

OPINIÃO14.06.202004:00

Sátira política. Histórias do Senhor Kraus neste intervalo. O Chefe e os seus Auxiliares.

Inaugurações (1)

1 - O Chefe estava nervoso. Andava de um lado para o outro............................... - Nada para inaugurar, nada! Estes homens não fizeram uma única cadeira. Não há nada para inaugurar!

- Nem uma agulha, Chefe.

- Nem uma agulha para inaugurar - murmurou o outro Auxiliar. - Nem uma agulhinha!

- Nem uma assim - insistiu o primeiro Auxiliar, juntando, expressivamente, o polegar e o indicador - Nem uma assim! Assim!

- Nada!

Os dois Auxiliares estavam como que hipnotizados por aquela lengalenga.

- Nem o buraco de uma agulha se fez!

- Nada. Nem um buraco.

- Nem metade de uma agulha.

- Nem metade do buraco de uma agulha.

- Nada, nada!

- Basta! - gritou o Chefe - Já não vos posso ouvir!

- Nós calamo-nos, Chefe.

- Tive uma ideia - exclamou, subitamente, o primeiro Auxiliar.

- Bravo!

- A minha ideia é a seguinte: o Chefe já alguma vez veio a esta terra tão desagradável, friorenta, deserta, nojenta até, sob certo ponto de vista, mas tão prometedora?

- Eu? Claro que não. Você é louco?

- Ora ai está!

- O que é que aí está?!

- Podemos inaugurar a sua presença nesta terra. É a primeira vez que o Chefe vem a este espaço. Isso não é extraordinário?

- Começo a gostar de ideia. E faz sentido.

- Nunca mais se fará nada de tão importante nesta terra!

- Não seja exagerado - murmurou o Chefe, enquanto quase se afogava de contentamento no seu próprio queixo.

- Talvez seja então de um de nós inaugurar a presença de Vossa Excelência nesta terra, Chefe. Que lhe parece?

- Eu mesmo vou inaugurar a minha presença nesta terra!!

- Não é fácil - disseram os dois Auxiliares em coro. - Inaugurar e ser a coisa inaugurada ao mesmo tempo...

Foi então que, levantando vigorosamente o queixo em direcção ao céu, o Chefe respondeu, de uma vez:

- Sou um homem que gosta de enfrentar as dificuldades.

E era, de facto.

Inaugurações (2)

2- Chefe, tudo o que ocupa volume já foi inaugurado nesta santa terra onde viemos cair!..................Mais uma vez o desalento. Olhavam em redor: tudo já inaugurado.

Algumas coisas estavam mesmo inauguradas há séculos.

- Este castelo...?

- Não. É anterior à chegada de vossa Excelência...

 - Se tudo o que nesta terra ocupa volume já foi inaugurado - disse o Chefe - então temos de pensar nas coisas que não ocupam volume!

- Não me tinha lembrado disso, Chefe.

- Eu por acaso tinha-me lembrado disso - exclamou o outro Auxiliar - mas depois esqueci-me.

- Pois bem - continuou o Chefe, ignorando os murmúrios esforçados dos dois Auxiliares - apareceu aqui uma ideia!

- Onde, Chefe?!

O Chefe continuou.

- A minha ideia é a seguinte: alguma vez nesta terra ocorreu este dia de hoje?

- O Chefe está a perguntar se alguma vez, antes de hoje, existiu o hoje?

- Nesta terra, refiro-me apenas a esta terra - esclareceu o Chefe.

- Nunca, Chefe. É a primeira vez que este dia vem a esta terra.

- Lá está!

- O quê, Chefe?

- Podemos inaugurar este dia nesta terra. Eu inauguro o dia de hoje...

- É uma ideia impressionante, Chefe.

- Em vez de inaugurar espaços, inaugurar tempos, eis uma ideia importante, sem dúvida...

O Chefe fez uma pausa. Instalou-se o silêncio. Ele recomeçou:

- ... porém, fazer apenas uma inauguração, o dia de hoje, sabe-me a pouco. Quanto tempo ficamos nesta terra, excelentíssimos auxiliares?

- No programa está previsto ficarmos duas horas.

- Duas horas? Isso dá quantos quartos de hora?

- Oito, Chefe. Quatro quartos de hora na primeira hora, mais quatro quartos de hora na segunda hora. Oito no total.

- Pois bem, vamos inaugurar não o dia de hoje, mas os quartos de hora. De quinze em quinze minutos inauguramos os quinze minutos seguintes. Oito inaugurações.

Os dois Auxiliares estavam mudos.

- Era então isso que tinha em mente quando referiu a possibilidade de inaugurarmos coisas que não tivessem volume, que não ocupassem espaço...

- No fundo, inaugurar coisas que não sejam visíveis - esclareceu o Chefe.

- Exactamente.

- Inaugurar o invisível! Oh, Chefe, que ideia!