A angústia de um fim de ciclo
Na cultura portuguesa, discutir um presidente é discutir o ‘chefe da igreja’, trair a fé, ou seja, algo inadmissível em qualquer religião
NADA é mais conservador na sociedade portuguesa, já de si historicamente tradicional nos usos e costumes, do que a cultura de clube no desporto e, em particular, no futebol. Todos os nossos grandes clubes são um género de Vaticano, um Estado dentro do Estado, com uma população de fiéis e de crentes nos seus símbolos e nos seus rituais. O clube, como Salazar dizia da Pátria, não se discute e por isso também não se discutem os seus presidentes, eleitos numa democracia com base na vontade da minoria ativa. Discutir o presidente é discutir o clube, discutir o chefe da igreja, discutir a fé, ou seja, algo inadmissível em qualquer religião.
Quando, por qualquer diverso motivo, a maioria dos quais se prende com maus resultados desportivos, se põe em causa a posição autocrática do chefe, logo o rebanho de aficionados surge, solícito e venerador, num coro afinado: «Estão a atacar o clube.» A coisa resulta. O hábito de confundir o clube com o seu presidente é tão vulgar que uma simples crítica a uma decisão presidencial é vista como uma traição ou, pior, um comportamento de herege. Noutros tempos, o crítico correria o risco de morrer assado numa fogueira da Santa Inquisição. Nestes tempos, arrisca-se a ser cilindrado pelos trauliteiros digitais que agitam as redes no proveito da ignorância coletiva.
Num clube, em qualquer clube, não há receio maior do que o da mudança. Mudar significa o desconhecido e a visão do novo, mais do que preocupa, aterroriza. Por isso, em Portugal, mesmo quando muda o presidente, não muda o regime presidencialista que, mais tarde ou mais cedo, torna todos os presidentes mais ou menos iguais no mando e no desmando.
Hoje, o Benfica vive, assustado e perplexo, a evidente obrigatoriedade de mudança e a primeira ideia que sobressai é a de que a fação do regime procura, desde já, conquistar o seu espaço para mudar o menos possível; e o menos possível tem um único e esclarecedor nome: Luís Filipe Vieira.
Luís Filipe Vieira suspendeu funções
No fundo, tratar-se-ia, apenas, de apressar o que estava já planeado. Lembremo-nos do que Vieira disse, após a reeleição: «Eu sou o presente, o Rui Costa é o futuro.» Mistérios da fé, como se diria no templo, e, assim sendo, dadas as circunstâncias, apenas haverá que apressar o andor e passar, desde já, do presente ao futuro. O mesmo estafado futuro que não é mais do que continuar o passado.
Não me interpretem mal. Não estão em causa nomes e personagens. Essa é uma velha armadilha nacional em que eu não quero cair. Nem estão em causa personalidades e caráteres. Estão em causa o regime e a visão do milagre da fé, que nos indica que tudo na vida do clube se resume ao amor à camisola, à paixão pelo símbolo, ao lema, à bandeira.
Na verdade, é apenas um dogma para alimentar crentes e crenças. Hoje, um grande clube precisa de técnicos altamente especializados e competentes e de administradores que sejam mais do que fieis apóstolos. Sejam, ou não, adeptos convictos do clube, sejam, ou não, da família ou da casta presidencial.
Enfrentar um fim de ciclo, eis algo para que nenhum presidente em funções parece estar preparado. O exemplo maior é o do FC Porto, que aguarda, sem angústia aparente, a determinação inclemente da natureza. Mas há, recente, um exemplo que chama a atenção dos novos fieis. Em Alvalade houve uma mudança sem sobressalto, uma mudança de rutura, uma mudança que não se preveniu com a ideia de continuidade. Um novo presidente e novas ideias. Apesar do pouco carisma, as coisas correram excecionalmente bem. Uma luz de esperança.
DE CALABOTE A HUGO MIGUEL
O mundo muda, mas Pinto da Costa não. É igual a si próprio. Pode ver o País mergulhado numa pandemia descontrolada, o seu rival do Benfica enfiado nos calabouços policiais, o Campeonato da Europa a saudar um novo futebol impetuoso, enérgico e moderno, Mourinho a ser apresentado na Roma, nada o motiva, nada o entusiasma, nada o perturba. Só o passado conta. De Calabote a Hugo Miguel. Toda a grandeza do futebol e até toda a dimensão da vida se resume a árbitros que nos incomodaram. É, de facto, deprimente.
AS PERGUNTAS DA PANDEMIA
Antes, as medidas de contenção social faziam sentido. Mais apertadas quanto mais larga a contaminação. Eram desconfortáveis, mas eram lógicas e percetíveis. Agora, as decisões parecem avulsas e sem coerência. Parece que o vírus tira os fins de semana para se divertir e por isso jantar à sexta tem restrições que não são exigidas à quinta ou à quarta. No entanto, o povo, apesar de tudo, vai de férias e todos os dias da semana são como se fossem sábados ou domingos. Entretanto, continua a morrer gente. Quem? Jovens? Vacinados? Porquê?