Walter em retrospetiva, sem esquecer o FC Porto: «Prometeram luvas, não pagaram»

Brasil Walter em retrospetiva, sem esquecer o FC Porto: «Prometeram luvas, não pagaram»

INTERNACIONAL15.06.202315:52

Numa emotiva carta publicada no Globoesporte, Walter faz o balanço de uma vida marcada por várias polémicas que tentou conciliar com a carreira da vida de futebolista profissional. O avançado abriu feridas, recordou o assassinato do irmão e o desaparecimento do pai e falou do esforço para controlar o excesso de peso e da suspensão por doping no Brasil, sem esquecer a curta passagem pela Europa para representar o FC Porto.

«O futebol devolveu-me uma dignidade negada na infância. Porque, fora do campo, Walter não sabe fazer nada. Não consigo imaginar o que eu poderia ter sido se não fosse a bola. Talvez, vendedor de água no sinal. De pipoca, laranja... O que eu já fazia quando era menor, mais jovem, escondido da minha mãe para ganhar uns trocados. E é para esse menino que eu diria: “Estude, Walter! Por favor, estude.” Sou semianalfabeto. Larguei o colégio na quinta série - depois de reprovar cinco vezes. Não sabia ler e escrever até aos 18 anos. Tenho muita vergonha disso. Um dos meus poucos arrependimentos na vida é esse. Aliás, o principal», refere o jogador, agora com 33 anos, apontando exemplos de como os estudos podiam ter dado «outro rumo à carreira»:

«Quando saí de casa, aos 14 anos, depois de rodar na base do Santa Cruz e do Sport, no Recife, fui para o Vitória, da Bahia. Cheguei ganhando um salário de R$ 800, mas meu empresário achou pouco, e me levou para o São José para eu ganhar… R$ 100. Tem vezes que o empresário tira você de um lugar - como me tirou do Coque, um bairro extremamente violento -, dá aquelas coisas (celular, dinheiro...) e você acredita no cara. Só que eu não sabia ler, não sabia escrever. Não reclamei. Meti na cabeça, então, que ia trabalhar para ganhar mais.»

«Veio a Copa São Paulo, em 2008. Fui artilheiro pelo São José, e o Internacional se interessou por mim. Assinamos contrato de risco de seis meses para o sub-20. Caso eu jogasse bem, renovariam por cinco anos no profissional. E assim aconteceu. Meu salário pulou de R$ 1.500 para R$ 15 mil. Pedi um ano de antecipação e transferi todo o dinheiro para a minha mãe comprar um apartamento para ela. Até hoje, um dos meus maiores sonhos realizados. Um dos tantos sonhos realizados. Como foi quando fui convocado para a seleção de base. (…) Nem acreditei, mas quando cheguei lá, graças a Deus fui artilheiro, melhor jogador e campeão do Sul-Americano sub-20», recorda.

Ida para o FC Porto e regresso ao Brasil:

«Fiquei no Inter até 2010. Conquistei o Campeonato Gaúcho Sub-20 e o profissional, em 2009, até chegar o interesse do FC Porto, de Portugal. Ali, mais uma vez, senti o peso do que é estar à margem de tudo. Não entender as coisas direito. Fui vendido por um valor. Me disseram outro. Menor. Tipo assim: me prometeram um salário de 30 mil euros. Eu recebia 15 mil euros. Prometeram uma luva de R$ 500 mil. Não me pagaram até hoje. “Ah, Walter, por que tu não cobrou? Não questionou?” Eu não sabia quanto valia o euro, cara. Falava: que moeda é essa? Que moeda é o dólar? Mas jogar no FC Porto, naquele momento, bastava. Dividir o campo com Hulk, Falcão Garcia… E isso bastou até ao nascimento da minha filha, Catarina Vitória, em 2010. Porque pela primeira vez comecei a pensar em mim. Com 23 anos. Quis voltar para o Brasil, não estava satisfeito em Portugal. Deixei o FC Porto e fui jogar no Cruzeiro, emprestado. Sofri com duas lesões, joguei pouco - e mal.

Até que meu telefone toca. Do outro lado da linha estava Enderson Moreira. “Vem para cá que você vai jogar”. Era o técnico do Goiás, lugar onde minha carreira mudaria. Artilheiro do Brasileirão, Bola de Prata, campeão da Série B, semifinalista da Copa do Brasil… Os holofotes estavam em mim. Pelo que fiz em campo.»

Problemas com o peso:

«Nunca neguei problemas com o peso. Chamam-me cachaceiro, mas eu não gosto de beber. Meu negócio é comida. Coca-cola, biscoito recheado... E não tem quantidade, tipo assim, comer 20 biscoitos por dia… É abrir a boca. As pessoas apontam o dedo, julgam, mas ninguém quer entender. Cada um tem sua história e a minha, irmão, é de um menino que ia no mercado, queria um algo a mais para comer e não tinha nada no bolso. Engolia o choro e seguia.

Quando eu voltei para o Athletico, em 2020, fiz um tratamento. O clube contratou um psicólogo para conversar todos os dias comigo e ele disse: “Walter, o seu problema é compensar na comida o que você não teve no passado. A gente vai cuidar”. Perdi 23 kg em quatro meses, cheguei a 90 kg, até hoje o meu menor peso.»

Caso de doping e o apoio da mãe:

«Dona Edith apoiou-me em todos os momentos. Estava por mim nos bons e, principalmente, nos ruins. No pior deles: o doping. Sumi do mapa por dois anos, isolei-me. Não via TV, não assistia nada de futebol. Joguei até em equipas de pelada para ganhar dinheiro. Na época, eu jogava no CSA em 2018 e acabei tomando um remédio para emagrecer depois de receber uma mensagem de uma mulher no Instagram, pedindo para fazer uma parceria. Falei com o médico do clube, ele autorizou e eu tomei. Fui inocente de confiar nas pessoas. Inocência que custou caro: mais de R$ 1,5 milhão - gastos entre processos na Justiça e pagamentos de advogados. Pelo menos durante a suspensão por doping que eu vi quem é quem. Quem são meus amigos de verdade. Porque no futebol você tem conhecido. Amigo mesmo eu conto nos dedos.

Como seu Hailé Pinheiro, presidente do Goiás, que tirou R$ 100 mil do bolso para eu ser julgado no Tribunal Arbitral do Desporte (TAS), na Suíça. A gente tinha esperança de barrar a ampliação da pena, que era de um ano, para dois de afastamento. Não deu certo. Também não esqueço de quem me ajudou a sair do buraco quando finalmente voltei a jogar: Petraglia, presidente do Athletico. Disputei Libertadores, Série A e Copa do Brasil. Dois anos depois de viver a pior fase da minha carreira.»

Regresso à «estaca zero»

«Pensei em largar o futebol, estava cansado. Tomei um tempo para mim mesmo. Acima de tudo, ouvi. Ouvi minha família e, principalmente, minha filha, Catarina. “Pai, não desiste, faz o que você sabe”. Por ela, continuei. Afinal, a minha caminhada sempre foi essa: cair e levantar.

Ainda quero voltar a jogar uma Série A, Série B. Tenho esse sonho. Sei da minha capacidade. Mas, igualmente sei que eu preciso mais de mim. Porque essas últimas experiências em equipas menores, com todo respeito, mostraram a realidade. O meu momento no futebol: tomei um susto.

A gente tende a sofrer no começo da carreira, pegando equipas menores para crescer mais à frente. E comigo aconteceu o oposto. Confesso que passar pelo que eu passei nos últimos dois anos é diferente de tudo.»

Retrospetiva:

«Ainda assim, quando olho para trás, percebo mais conquistas do que fracassos. Lembro da minha infância, o “Quico do Coque”, à espera de uma oportunidade para ganhar o mundo com a bola nos pés e se forjar Walter. Consegui. Vejo também alguns traumas nessa jornada, como o abandono do meu pai, José Amaro, durante a infância, e que hoje está desaparecido. O assassinato do meu irmão Waldemir, por tráfico de drogas, quando eu ainda era uma criança. Feridas abertas. Mas estou inteiro. Não tenho do que reclamar, mesmo se não voltar a jogar uma Série A. Estou satisfeito com o que eu fiz. Aonde eu chego as pessoas param para tirar foto comigo, me conhecem. Fruto do meu trabalho. Pelo meu dom em jogar futebol. Não por causa do meu excesso de peso.»

Mea culpa:

«Saí de um bairro simples e fui vencer minha vida fora. Em dois, três anos, estava na Europa. Não esperava. Não tive estrutura para pegar isso. Que fique registado: essa carta não é uma tentativa de jogar culpa nos outros pelas minhas quedas. Eu me prejudiquei, mas nem tudo é preto no branco. Ainda há tempo. Posso me reinventar aos 33 anos. Construir o Walter do futuro. Estudar mais. Penso em ser treinador daqui a uns anos. Ajudar o Coque com projetos sociais, tirando alguns meninos da comunidade através do futebol.»

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