A contabilidade da culpa (artigo de José Antunes de Sousa, 113)

Espaço Universidade A contabilidade da culpa (artigo de José Antunes de Sousa, 113)

ESPAÇO UNIVERSIDADE16.02.202219:09

O futebol é, sem dúvida, motivo de dúplice e paradoxal percepção: se, em espasmos de glória em competições internacionais nos afaga a alma, por outro lado e teimosamente, abunda em práticas que nos cobrem o rosto de vergonha - como aconteceu no estádio do Dragão no clássico FCP- SCP. E não foi só aquela molhada após o apito final do árbitro em pânico, mas tudo o que a precedeu e que deveria ser um jogo de futebol, mas não passou de uma indecorosa palhaçada. Tratou-se, reconheçamos, de uma comédia em dois actos - dois momentos do mesmo espectáculo.

No primeiro acto, com efeito, os actores, rascas, seguramente, entregaram-se, com exemplar diligência, ao perverso exercício de subverter o próprio tempo de duração do espectáculo. Como? Através da exploração de uma característica bem arraigada na personalidade do português: as irresistível tendência para a golpada e que tão bem se enquadra na cultura, bem latina, do  expediente.
 

Sim, o jogador português, nem só o jogador e não só o português, evidencia uma notável queda para o teatro, que redunda, por seu turno, num sistemático e descarado teatro da queda: nem é preciso que o adversário toque - basta que esboce o gesto. Mais que teatro, que o teatro não merece tamanho enxovalho, é uma ostensiva vigarice.
 

Portugal é bicampeão europeu e campeão mundial de futsal, ironicamente, uma modalidade em que se não pode perder um segundo de jogo que seja, o que nos confirma na seguinte convicção: no futebol não se joga mais porque os protagonistas (jogadores, técnicos e árbitros) não querem - e alguns dirigentes também não!
 

Mais, às vezes bem mais, de metade dos 90 minutos são consumidos no arraial de quedas, qual delas a mais espectacular, e apitadelas numa indecorosa cacofonia da deslealdade e desrespeito pelos heróicos espectadores.
 

É a nossa proverbial cultura da simulação, da manha, da sorna que, como a sarna, a todos contagia à velocidade do vírus endémico.

E, neste sentido, a sessão de empurrões, pontapés e chapadas que se seguiu ao fim oficial do jogo (?) não passou do epílogo de uma tragicomédia no decurso da qual leões e dragões, dois animais em destaque no Livro do Apocalipse, se entregaram ao exercício autofágico de acabar com o futebol.
 

Mas, de toda esta desgraça, há algo que a torna ainda maior: a disputa entre os dois clubes a ver quem dos dois tinha começado primeiro e a quem deveria ser imputada a culpa de tão lamentável desfecho - como se se tratasse de um desafio entre crianças da primária e latagões adultos, entre anjinhos e malandrecos.
 

Este incauto e ridículo exercício de contabilização da culpa é bem a triste metáfora do estado de insensatez e inconsciência a que chegou o andrajoso futebol português.
 

Viremo-nos para Fatima: porque, depois destas tristes figuras, termos duas equipas nos oitavos da Champions só pode ser um grande milagre!

Termino em tom desafiador - que este futebol precisa de verdadeiros desafios:
 

90% das faltas assinaladas não o são de facto - pura fita.
 

Por que é que os nossos árbitros sofrem de incontinência  apital? Por que é que os nossos árbitros apitam a tudo o que mexe, ou a qualquer jogador que caia? Por medo, meus amigos. É sempre muito mais cómodo cumprir o regulamento ao pé da letra do que assumir o risco de ter que enfrentar consequências de uma corajosa interpretação.
 

Aconselho um concerto no anfiteatro da Liga: do Requiem de Mozart.

José Antunes de Sousa
Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa