«Sou hoje melhor atleta do que antes de ser mãe»
Márcia Costa em entrevista no Pavilhão do GDESSA, no Barreiro

ENTREVISTA A BOLA «Sou hoje melhor atleta do que antes de ser mãe»

BASQUETEBOL30.04.202411:00

Márcia Costa, do Gdessa, eleita pela Federação como jogadora da década, é exemplo vivo da compatibilidade entre ser mãe e jogadora

Falámos em março, um mês com aura feminina. É o mês do dia da Mulher, arranca a primavera. Começa com M, tal como o nome de Márcia Costa, jogadora de basquetebol profissional, campeã nacional da época 2022/23, mãe. Sem nenhuma ordem específica. Apenas várias facetas de uma pessoa que tenta não se deixar vergar pelo género e aponta para cima, como afirmou na campanha da Betclic, patrocinadora do campeonato feminino, contra a discriminação de género

- O seu filho nasceu em fevereiro de 2020 e regresso foi bastante rápido. ‘Deu jeito’ ter sido em pandemia?

-Até deu. Quando estava grávida e sabia que não podia jogar, fui estudando e tirei mais um curso. Não perdi a época, porque as minhas colegas tiveram de parar. Voltei com alguma rapidez dentro daquilo que tinha estipulado. O Tomás tinha cerca de cinco meses e já cá estava nos treinos. O clube não deu as respostas todas, foi o contrário: eu trouxe as soluções e o clube disponibilizou-se a corresponder. [Desde que o nasceu que vai com ela para os treinos e fica acompanhado de uma babysitter]. Tudo o que implicou o meu regresso foi uma logística pensada em família. Requer muita dedicação nos primeiros meses, porque a intenção não é voltarmos com uma margem de erro maior do que as colegas que estão no mesmo dia, à mesma hora, connosco no pavilhão. É sermos respeitadas enquanto mulheres que voltamos de um pós-parto, mas no mesmo pé de igualdade. Mas, acima de tudo, que não sejamos postas de lado porque precisamos deste timing para voltar a ser o que éramos. Sempre tive muita certeza de que gostava de ser mãe e que não estava preparada para deixar o basquete. Então tivemos de pensar no melhor timing, arranjar soluções para um ambiente bom para que a mulher possa estar concentrada dentro de campo e ser a melhor mãe possível fora.

- O seu filho vai aos treinos, como é um dia de semana?

- Há dias que fica com o pai, mas na maior parte das vezes vem comigo e à hora a que chego ao pavilhão a baby-sitter também chega. Durante o treino está com ela, sabe que estou no treino e por isso a nossa interação é quase nula, porque estou a trabalhar. Sabe que a mãe está a trabalhar e que as ‘tias’ [as outras jogadoras] também. Fica no mundo dele. No início foi preciso explicar que não podia comunicar connosco,  perceber que nós próprias também não podíamos ter a tentação de falar com ele, mas hoje em dia é tudo muito claro. Quando acaba o treino ele faz parte da dinâmica da equipa, desde dar o grito a estar no balneário.

- É normal estar aqui.

- Para ele é normal estar aqui. Quando não vem são os dias mais complicados (risos). Se há uma semana inteira em que ele fica em casa com o pai já começa a perguntar ‘mas hoje não é dia de basquete?’. No final da época passada ficou muito contente, porque recebeu uma medalha e também foi campeão - e passadas duas semanas da época acabar, ia buscá-lo ao colégio e ele perguntava-me ‘mas nós não vamos ao basquete? Quero ir ao basquete!’

- Como é que ele explica a profissão da mãe?

- É muito natural para ele, a mãe joga basquete na GDESSA. Há pouco tempo disse-me que falou com os amigos, que diziam que eram do Benfica e do Sporting e do FC Porto e ele não, era da GDESSA e do Scalipus, as equipas onde a mãe e o pai jogam. Não estou sozinha nesta caminhada, tenho o Ricardo comigo e o fim de semana é simples. Se ele joga, nós vamos ver o jogo do pai. Se a mãe joga, vêm todos ver o jogo da mãe.

- E a babysitter? Ela também gosta de basquete? - Inevitavelmente já vai percebendo algumas coisas...

- Sente que, pelo seu exemplo, há mais colegas com vontade de fazer o mesmo?

- Felizmente temos muitos exemplos em outras divisões. Na 2.ª Divisão existem mães que são atletas. Na 1.ª Divisão também existem mães que são atletas. Na Liga Profissional, realmente, acho que vim mostrar que aqui é possível.

-A cantora Lilly Allen disse recentemente que as filhas lhe «destruíram a carreira»…

- Sou uma pessoa muito positiva, gosto de arranjar soluções, mas nem tudo é um mar de rosas, tem a ver com a nossa personalidade. O que não é justo é alguém que se sinta capaz de lutar contra adversidades inerentes a qualquer alteração que haja na nossa vida - aí estamos a falar do facto de ser mãe, mas também mudar de trabalho - não tenha apoio por falta de investimento da estrutura. Se calhar existem colegas minhas que podem não querer avançar em ser mães e serem atletas. Mas os clubes não estarem preparados para receber alguém que queira avançar com esta aventura… isso não deve acontecer.

- Sentiu pressão para voltar? Ou a pressão era mais pessoal?

- Não. A única pessoa que se propôs a estar nessa situação fui eu. Queria voltar a um nível, em que havia dúvidas, a campanha mostra um pouco isso. Não houve pressão nenhuma do clube para que voltasse. Mas não queria dar razões para que o meu valor enquanto atleta tivesse mudado ou diminuído. Aliás sei que sou muito melhor atleta hoje do que era antes de ser mãe. Sinto que voltei capaz de cumprir as minhas obrigações e posso ter dado a possibilidade a outras pessoas de se proporem a estar nesta posição.

- O que mudou?

- Esta dedicação mais minuciosa, para que não haja margem para que me apontem o dedo, apareceu com o facto de ter sido mãe. Era tudo mais inato. Emocionalmente, ia para casa e só tinha que lidar com a minha frustração e agora não. Lembro-me que no início do campeonato perdemos a Supertaça, a única que me falta ganhar cá em Portugal. E o Tomás sabia que eu queria muito ganhar essa taça. Quando acabou o jogo, frustração enorme, ele veio a chorar da bancada e disse ‘a equipa que estava de preto é má’. ’É má porquê?’ Porque ganhou-te, mãe’. A partir daí deixa de fazer sentido a minha frustração e penso ‘calma que tenho aqui uma pessoa para educar’. E isso também trouxe uma nova maneira de reagir às minhas derrotas.

-E sente que joga de maneira diferente quando o Tomás está a ver?

Não. Formatei-me. Quer nos treinos, quer nos jogos, sei que tenho o Tomás, o meu marido, outros familiares, amigos, mas formatei-me para o que tem que acontecer dentro de campo. É como se entrasse no escritório e fechasse a porta.

- Mas a maior parte das pessoas não tem os filhos a vê-los a trabalhar…

- É verdade, mas não me causa aflição, transtorno, receios. É algo que faço com muita naturalidade. Emocionalmente, não mexe comigo. Óbvio que acaba o jogo e o mindset muda. Se ganho um campeonato, o que mais quero é pegar o meu filho e trazê-lo para dentro de campo. Aí já estou a rever todo o sacrifício que se esteve à volta disto e quero é pegar na minha família e tê-la dentro de campo comigo. Mas na hora dos treinos entro aqui, e confio-o à pessoa que escolhemos para estar aqui com ele e para mim está tudo bem. E isto acontece desde os seis meses. Vinha treinar de manhã - aí não tinha babysitter -, punha-o ali no cantinho, até tenho fotos dele no ovo, e seguia a minha vida. Nunca senti mesmo que emocionalmente ele me trouxesse oscilações.

- E até acrescenta...

- Sim, quanto muito acrescenta. Porque o mindset é de quem está a jogar e de quem quer realmente fazer o melhor.