Bem-vindo a Iten, a vila onde nascem campeões olímpicos
A famosa entrada de Iten (DR)

A BOLA NO QUÉNIA Bem-vindo a Iten, a vila onde nascem campeões olímpicos

ATLETISMO06.02.202408:30

Samuel Barata, melhor maratonista português da atualidade e terceiro melhor de sempre, apenas atrás de António Pinto e Carlos Lopes, está em Iten a treinar-se. A BOLA passou por lá...

Imaginem uma vila com 42 mil habitantes. Quase todos pobres. Muito pobres. Quase todos simpáticos. Muito simpáticos. Coloquem a vila 2400 metros acima do nível do mar. Acrescentem 30 graus de temperatura e uma vegetação exuberante e cortada por estradas onduladas de argila vermelha e riachos de água fresca. Finalmente, polvilhem o horizonte com centenas de corredores: altos e baixos, novos e velhos, brancos e negros, velozes e lentos. A vila chama-se Iten e está no coração do Quénia, a 300 quilómetros da capital Nairobi. «Bem-vindo a Iten, casa dos campeões», diz a placa que anuncia a entrada na vila. E é verdade. É aqui que se treinam muitos dos melhores fundistas mundiais. Como o português Samuel Barata.

32 campeões olímpicos…

Centremo-nos, para já, numa perspetiva macro: Quénia. O país, de 580 mil quilómetros quadrados e 51 milhões de habitantes (aproximadamente cinco vezes maior que Portugal e com o quíntuplo da população), já produziu nada menos de 25 campeões olímpicos de meio-fundo e fundo (800 m, 1500 m, 3000 m obstáculos, 5000 m, 10 000 m e maratona) e mais 39 medalhas olímpicas de prata e bronze. Só no setor masculino. Se juntarmos as mulheres, que apareceram mais tarde nas grandes competições internacionais, teremos de acrescentar mais sete campeãs olímpicas e 22 medalhas de prata e bronze.

… e nada menos de três em Iten!

Passemos agora à perspetiva micro: Iten. A vila produziu três campeões olímpicos, nascidos ou adotados: Peter Rono (1500 m, Seul-1988), Matthew Birir (3000 m obstáculos, Barcelona-1992) e David Rudisha (800 m, Londres-2012). Mais seis campeões do mundo, como Wilson Boit Kipketer, Edna Kiplagat, Florence Kiplagat, Lornah Kiplagat, Linet Masai e Mary Keitany. E ainda dezenas de grandes atletas dispersos por todas as disciplinas de meio-fundo e fundo. Se nos espantamos quando contamos os grandes fundistas nascidos no Quénia, que dizer quando contabilizamos os números de Iten? Talvez i-na-cre-di-tá-vel seja a palavra mais correta.

Um dos famosos matatus

Os múltiplos ‘matatus’

Chegar a Iten não é simples. Não há voos diretos de Portugal, tal como de muitos outros países, pelo que é sempre necessário fazer uma escala. No caso de A BOLA a escala foi Paris. Depois a viagem Paris-Nairobi para pousar no Aeroporto Internacional Jomo Kenyatta (primeiro presidente do Quénia, entre 1964 e 1978) e uma noite passada na capital queniana. Depois um voo interno de Nairobi até Eldoret e, finalmente, 30 quilómetros numa carrinha até Iten. Existe a opção de ser transportado nos chamados matatus, espécie de táxis quenianos, que não são mais do que micro-autocarros para seis pessoas, nos quais, com boa vontade, cabem pelo menos outras seis. Pela viagem pagará 100 xelins quenianos (pouco mais de meio euro). Finalmente, em Iten, poderá movimentar-se numa motocicleta local, ou boda-boda com motor, igualmente por pouco mais de meio euro.

O Santo Graal

É em Iten que centenas de corredores não africanos (Europa, Américas e Ásia) se treinam para tentar atingir o nível competitivo dos quenianos. Outros, como o jornalista de A BOLA, querem descobrir o segredo. O mapa da mina. O Santo Graal. Há várias teorias para desmontar o segredo: altitude, dieta, genética, formato do corpo, treino e disciplina mental, por exemplo, são algumas.

Samuel Barata, 3.º de sempre

Dia e meio para viajar de Lisboa a Iten. Mas a reportagem vale a pena. Sobretudo porque servirá também para acompanhar o estágio de Samuel Barata, o melhor maratonista português de atualidade, com 2 horas, 7 minutos e 35 segundos. Apenas António Pinto (2h06.36) e Carlos Lopes (2h.07.12) correram a distância em menos tempo. Barata estará acompanhado pelo seu treinador, António Sousa, bem como por Samuel Freire, o melhor fundista de Cabo Verde e seu habitual companheiro de treino.

Samuel Barata e o treinador António Sousa (DR)

Portugal, anos 60/70

Entrar em Iten é como mergulhar numa aldeia de Portugal dos anos 60 ou 70. Muita pobreza, alguma miséria até. Casas de madeira a rodear a estrada de alcatrão e, paralela a esta, um caminho de terra vermelha extremamente ondulado, onde se treinam centenas de corredores. Minúsculas habitações indicam as mais diversas especialidades: hotéis, cabeleireiros, mercados, farmácias, confeções de colares e pulseiras e venda do mais diverso artesanato, etc. 

Adidas, Nike ou Asics

Existem diversas opções de hospedagem em Iten. Podemos ficar num hotel, num campo de treino ou numa pousada.  Alguns ligados a conceituadas marcas de equipamentos desportivos, como Adidas, Nike ou Asics, outros construídos por particulares, como são os casos do Kerio View e do High Altitude Training Centre. Este é o mais ocidental dos campos de treino, com muitos privilégios concedidos aos hóspedes: ginásio com diversos aparelhos de musculação, clínica de fisioterapia e massagem desportiva, duas saunas, piscina, treinadores e pista de tartan de 400 m.

A casa Adidas em Iten (DR)

Eliud Kipchoge a 35 km

A imagem mais marcante de Iten são os corredores. Quando A BOLA chega a Iten, o dia parece ser especial: dezenas e dezenas de pessoas correm pelo ondulado caminho de terra batida. Depressa percebemos que não é bem assim. O dia não é especial, nem sequer a hora do dia. Tudo começa por volta das seis da manhã e termina já com o sol posto. Repete-se a ideia: dezenas e dezenas de pessoas correm pelo ondulado caminho de terra batida ao longo de quase todas as horas do dia. E bastantes atletas de elite, como maratonistas de duas horas e cinco minutos, por exemplo. Eliud Kipchoge, o super maratonista, treina-se na região, mas não em Iten. Corre, sobretudo, em Eldoret e Kaptagat. A 35 km.

Mais glóbulos vermelhos

Primeira impressão: é difícil correr em Iten. Muito difícil, sobretudo para quem não está habituado. Correr a 2400 metros de altitude, com 30 graus de temperatura e por tanto trilho com vista para o Grande Vale do Rift, é um cocktail muito complicado de absorver. Correr a seis minutos/km, por exemplo, transforma-se num ritmo de cinco minutos/km para as pernas e de quatro minutos/km para os pulmões. De início, é difícil entender a razão pela qual tudo se torna tão complicado. Tudo se torna percetível quando nos é explicado: ar rarefeito. Quanto mais alto estamos, mais baixa é a concentração de oxigénio e, por extensão, mais difícil se torna respirar da forma a que estamos habituados a fazer ao nível do mar. Aumento da frequência cardíaca, falta de apetite, dor de cabeça, náusea e até vómitos podem ser alguns dos sintomas de que poderá padecer quem chega a Iten sem a preparação adequada. Porém, o progressivo aumento da concentração de glóbulos vermelhos e hemoglobina durante os treinos, possibilitará aos atletas grande boost quando regressarem a altitudes mais baixas. Para o comum dos mortais, como o jornalista de A BOLA, os glóbulos vermelhos parecem muito lentos no ato de reprodução.

Lavatórios nas ruas de Iten (DR)

Um ‘muzungu’ em Iten

O que ajuda à adaptação aos 2400 metros de altitude são as pessoas. Em cada habitante de Iten há sempre dose generosa de simpatia. Sobretudo entre as crianças. Quando nos cruzamos com alguém abaixo dos 15 anos, surge sempre um hello ou um toque de mãos enquanto se corre ou se passeia. O muzungu, termo suaíli para homem branco, sorri e replica o afeto. O charme nunca se perderá. Correr em Iten, como perceberá quem por aqui permanece mais do que alguns dias, é muito mais do que treinar. É atitude, sentimento e confiança. É a noção, sobretudo para os não africanos de top mundial, de que, colocado no mesmo ambiente e nas mesmas condições, pode fazer a mesma coisa que os africanos. Ou, no mínimo, algo aproximado. Iten, porém, não é apenas um ótimo lugar para treinos de longa distância, mas também um muito bom lugar para desfrutar da natureza: safaris, exploração de cavernas, escarpas, cachoeiras e observar a vida selvagem.

Os kalenjin

Regressemos às corridas. Se os quenianos são tremendos atletas de fundo, em muito o devem a duas das mais famosas tribos do país: os kalenjin e os masai. Os primeiros, totalizando mais de seis milhões de indígenas, são originários da África Oriental e residem, sobretudo, no que era a província do Vale do Rift e nas encostas orientais do Monte Elgon, no Uganda. Há depois as subdivisões dos kalenjin, como Kipsigis, Nandi, Pokots, Sebei, Sabaot, Keiyo, Tugen, Cherengany, Marakwet, Ogiek, Terik, Lembus ou Sengwer. Há 42 dialetos no Quénia e todos bem diferentes uns dos outros.

O mais famoso dos kalenjin é, de momento, Eliud Kipchoge, bicampeão olímpico da maratona (2016 e 2021), detentor da segunda melhor marca de sempre na distância e primeiro homem a correr os 42 quilómetros, embora sob condições muito especiais, abaixo das duas horas. Mas há muito mais, como Joshua Cheptegei (ugandês recordista do mundo dos 10 000 m e campeão olímpico dos 5000 m, em 2021), Kipchoge Keino (campeão olímpico dos 1500 m em 1968 e dos 3000 m obstáculos em 1972, além de antigo recordista do mundo nas duas distâncias), Ezekiel Kemboi (bicampeão olímpico de 3000 m obstáculos em 2004 e 2012 e tetra campeão do mundo na distância, em 2009, 2011, 2013 e 2015), Faith Kipyegon (bicampeã olímpica de 1500 m em 2016 e 2021, tricampeã do mundo em 2017, 2022 e 2023 e recordista do mundo de 1500 m, milha e 5000 m) e Brigid Kosgei (ex-recordista do Mundo da maratona). Mary Keitany é a recordista women-only (2h17.01) e Tigst Assefa é a recordista mixed (2h11.53).

Os mais famosos masai

Os masai são uma tribo mais pequena, com pouco mais de 850 mil indivíduos, que vive no Quénia e no norte da Tanzânia. O mais famoso é  o já retirado David Rudisha, agora com 35 anos, que foi para Iten no início do século para se treinar com o Brother Colm O’Connell. Tornar-se-ia bicampeão olímpico de 800 metros em 2012 e 2016, campeão do mundo em 2011 e 2015 e atual recordista do mundo da distância).

Rio, Denver e Iten

Se quiser saber como é viver e treinar ao lado de alguns dos melhores fundistas do mundo, vá até ao Quénia. E a Iten. É como estar no Rio de Janeiro para ver como se treina a seleção de futebol do Brasil ou em Denver para observar como trabalha a equipa da NBA dos Nuggets. Se não quiser deslocar-se ao Quénia, leia as sucessivas reportagens de A BOLA no berço onde nasce a maioria dos grandes fundistas mundiais. Em Iten, repete-se, a casa dos campeões.