«Eusébio construía pontes onde estavam destruídas»
Manuel Alegre esteve nas novas instalações de A BOLA

CONSELHO DE ESTÁDIO «Eusébio construía pontes onde estavam destruídas»

NACIONAL25.04.202409:00

Que melhor forma de comemorar os 50 anos do 25 de Abril do que com a presença de Manuel Alegre no ‘Conselho de Estádio’, de A BOLA TV? Personalidade fascinante, ‘senador’ da República, Alegre guiou-nos pelos caminhos que percorreu da clandestinidade até aos dias de hoje, da forma apaixonada e genuína que sempre o definiu

VÍTOR SERPA (VS) - Cinquenta anos depois do 25 de Abril, qual é o sentimento que tem em relação àquele dia?

MANUEL ALEGRE - Um sentimento de que valeu a pena, porque vivemos em democracia, uma democracia incompleta, porque a democracia nunca está acabada. Mas o 25 de Abril provocou profundas transformações no nosso País. Políticas e económicas. Criámos um Estado de Direito democrático, criámos um Estado social, com o Serviço Nacional de Saúde, com a Escola Pública, com a Segurança Social Pública, enfim, com muitas outras coisas. E também criámos o poder autárquico, democrático, que tem grande influência no desporto, pela criação de infraestruturas em todo o país. O meu sentimento é o sentimento de que valeu a pena lutar contra o fascismo, valeu a pena lutar pela liberdade e pela democracia, valeu a pena, já depois do 25 de Abril, lutar contra a deriva da revolução, por uma democracia constitucional.

JOSÉ MANUEL DELGADO (JMD) - Mas o tempo presente configura mudanças…

- Agora vivemos um período que não é eufórico para a democracia, estamos perante um momento difícil em todo o mundo. Recordo quando Samuel Huntington, cientista político norte-americano, considerou o 25 de Abril como uma nova era democrática, e lembro-me da maneira como o 25 de Abril, por ter passado da ditadura para a democracia, sem cair em nova ditadura, influenciou a transição democrática em Espanha, na Grécia e também no Brasil. Vivemos então um período eufórico para a democracia, mas nos dias de hoje já não se fazem golpes de Estado com metralhadoras e tanques nas ruas.

JMD - Como assim?

- Há um processo de desconstrução da democracia dentro da própria democracia. Estamos perante movimentos de extrema direita, de xenofobia e de populismo, e testemunhamos o enfraquecimento dos partidos tradicionais, que fizeram a democracia na Europa e mesmo nos Estados Unidos. Portanto, não é um período eufórico para a democracia, e em Portugal também estamos a viver essa dificuldade, existe uma certa fragmentação política, que pode ser ou não ser um enriquecimento da democracia, e pela primeira vez deparamo-nos com o aparecimento de um partido populista, com uma forte representação parlamentar. Todavia, os partidos tradicionais têm demorado a baixar consideravelmente a sua votação e ainda mantém grande percentagem do voto dos portugueses.

VS - Mas existe responsabilidade dos partidos tradicionais, por não terem chegado, por exemplo, à juventude, que parece mais atraída por esse tipo de populismo?

- Talvez não se tenha feito suficiente pedagogia democrática. A culpa é da escola, a culpa é dos políticos, a culpa também é da comunicação social. Por outro lado, também não se resolveram muitos dos problemas concretos das pessoas e há muita gente que está zangada. Embora os nossos indicadores económicos e macroeconómicos sejam bons, há gente que vive mal, mesmo o rendimento médio em Portugal, mil e tal euros, é ridículo quando comparado com o rendimento médio europeu. Mas há desigualdade, o trabalho precário e a falta de uma habitação condigna de muitos não permitem a mesma dignidade, nem a mesma liberdade humana, relativamente a quem tem os seus problemas resolvidos. E é do facto desses problemas concretos não terem sido resolvidos e se terem, até, em parte, agravado, que nasce o populismo. O populismo é uma forma de protesto explorada demagogicamente.

VS - Hoje lê-se pouco e há uma cultura digital que se preocupa basicamente com aquilo que é a superfície das coisas. É, também, por tido isso, mais fácil de se infiltrar um determinado tipo de populismo?

- Isso é verdade. Nós os três que estamos aqui somos homens dos livros e dos jornais, a nossa cultura foi feita através da imprensa escrita e dos livros impressos. Hoje vive-se muito das redes sociais, que influenciam, por vezes negativamente, quer a política, quer a comunicação social. E duvido muito que seja uma forma de progresso da democracia. Pelo contrário. Não há controlo e esses meios podem ser utilizados para a subversão da democracia, feita por dentro da própria democracia. Mesmo os jovens políticos leem poucos livros, estão sempre com o telefone na orelha, sempre a digitar, sempre com o telefone e comunicam entre eles, dentro da mesma bolha. E isso é verdade também para os jornalistas. Eu acredito na cultura do livro e da letra impressa, embora esteja atento aos progressos inevitáveis que vão surgindo. Mas não creio que as redes sociais sejam benéficas nem para resolver os problemas, nem para o progresso da democracia.

JMD - O que fazer, então, já que não é possível parar o vento com as mãos?

- A melhor maneira de combater o populismo é resolver os problemas concretos. É preciso reaproximar a política das pessoas. O desemprego, felizmente, em Portugal tem diminuído, mas há muito trabalho precário, muita gente que não tem uma habitação condigna, muita gente a ganhar mal, e pessoas que estando empregadas, mesmo assim vivem perto da pobreza. São esses os problemas que é preciso enfrentar, sem demagogia, com seriedade, com rigor e com um grande sentido de coesão nacional.

ABRIL, ANTES E DEPOIS

JMD - O 25 de Abril apanhou-o com 37 anos, já depois de muito combate antifascista. Durante esses anos de exílio e prisão, alguma vez deixou de ter esperança?

- Houve períodos de um certo desalento. O exílio, sobretudo, é muito duro, e havia momentos em que nos perguntávamos se algum dia voltaríamos a Portugal. Não posso falar em perda de esperança, mas senti algum desespero, alguma tristeza, mágoa e sofrimento, mesmo. Aqui dez anos passam num instante. No exílio é muito tempo, cada dia parece um mês.

JMD - Soube antecipadamente que o 25 de Abril ia acontecer?

- Tive a perceção de que algo estava para acontecer quando os generais Spínola e Costa Gomes foram demitidos. Era preciso que qualquer coisa muito forte estivesse a passar-se para serem demitidos e era improvável que nada acontecesse a seguir.

JMD - Custou-lhe o PREC, quando pessoas que estiveram ao seu lado na luta antifascista, de repente, num ano, ficaram numa barricada diferente?

- O PREC foi um confronto de esquerda com esquerda, no essencial. Foi entre o Partido Socialista de um lado e o Partido Comunista do outro. E havia os militares que seguiam a orientação do Partido Comunista, que queria transformar a revolução democrática de abril numa revolução que levasse a algum tipo de democracia popular, como aquela que existia no leste, e aqueles que seguiam o programa do MFA, que visava a instauração de uma democracia política pluralista e pluripartidária.

VS - E o 25 de Novembro, onde do ponto de vista militar prevaleceu o Grupo dos Nove?

- O 25 de Novembro não foi uma vitória da direita sobre a esquerda. Foi uma vitória de uma parte da esquerda sobre uma esquerda mais radical.

JMD - O facto do 25 de Novembro acontecer duas semanas depois da última independência das colónias [Angola, 11 de Novembro de 1975], permite que se faça uma ligação entre uma coisa e a outra?

- Não, creio que não. Sinceramente, creio que não. O 25 de Novembro aconteceu num período já muito perturbado do chamado Gonçalvismo. Tinha havido, aliás, uma reunião em Alhandra, do Comité Central do Partido Comunista, onde Álvaro Cunhal criticou o irrealismo e, de certa maneira, deu como orientação parar. Soube disso através de dirigentes comunistas, meus amigos, que estiveram nessa reunião, onde Álvaro Cunhal criticou o esquerdismo e o irrealismo, que podiam levar a situações muito difíceis.

VS - Terá sido isso que levou Melo Antunes a incluir o Partido Comunista na continuidade dos propósitos do 25 de Abril?

- Nem todas as pessoas que estiveram no 25 de Novembro eram do Grupo dos Nove. Havia uma fação mais à direita e lembro-me de estar com Mário Soares no Gabinete de Pires Veloso [Comandante Militar da Região Norte] na noite do 25 de Novembro e entrar um general da Força Aérea a dizer que era preciso prender o Otelo, prender os comunistas, que era fundamental ir mais além. E o Mário Soares disse: «Se vocês vão por aí, têm que me prender, a mim e aos meus camaradas que estão aqui.»

MÁRIO SOARES

VS - A sua relação com Mário Soares foi feita de altos e baixos…

- Não, foi uma relação cúmplice e de grande amizade. Houve aquele problema da nossa separação, na primeira eleição presidencial a que concorri, e onde tive mais votos que ele. Mas creio que ambos fomos vítimas de várias intrigas e manobras políticas.

JMD - Mas acabaram por reconciliar-se…

- Ele estava muito doente, eu telefonei para a família, preocupado, falei para a Isabel e com a Maria Barroso, e um dia recebi um telefonema do António José Seguro, que me disse que alguém queria falar comigo. Era Mário Soares, que me disse: «Manuel, querido amigo, o que lá vai, lá vai. Você preocupou-se comigo, estou muito comovido.» Combinámos logo ali um almoço.

HUMBERTO DELGADO

VS - A democracia em Portugal podia ter acontecido mais cedo? A popularidade de Humberto Delgado acabou por não desaguar naquilo que era um desejo de mudança…

- Humberto Delgado foi uma pedrada no charco, que virou a política portuguesa, virou a oposição, e nada continuou a ser como era. Tudo mudou. Lembro-me da chegada do Delgado a Coimbra, do frenesim dele com os braços, como se nos estivesse a chamar e a puxar por nós. Foi uma coisa extraordinária. Ele levantou o País todo, de tal maneira que ele próprio julgou que podia ganhar as eleições. Não percebeu que os cadernos estavam truncados e que o ato eleitoral ia ser roubado. O general Humberto Delgado era um militar, capaz de liderar uma revolução ou chefiar uma campanha como foi aquela, mas não era um político, que aguentasse um exílio longo. Foi por isso que se deixou isolar e foi vítima de uma armadilha. Deu-se à morte. Deu-se à morte…

«Vivemos em democracia, uma democracia incompleta, porque a democracia nunca está acabada…»

OS ANOS DE EXÍLIO

VS - Recordo-me que há alguns anos fez uma Seleção Nacional deveras curiosa, que tinha o seguinte onze: Afonso Henriques; Nuno Álvares Pereira, Infante Dom Pedro, Bartolomeu Dias, Fernão Lopes; Gil Vicente, Camões, Fernando Pessoa; Salgueiro Maia, Amália Rodrigues e Cristiano Ronaldo. Trata-se, de facto, de uma seleção fantástica, onde não cabe, porém, nenhum político. Mário Soares, Sá Carneiro ou Álvaro Cunhal, por exemplo, podiam ser, pelo menos, suplentes?

- Tanto Mário Soares como Álvaro Cunhal tinham lugar até na equipa, dependia do estado de forma. Nessa altura eu pensei mais em figuras históricas, que pelas suas características passaram a fazer parte do património nacional, como Amália Rodrigues ou Ronaldo.

JMD - Eusébio foi um grande fenómeno popular incomparável, mais genuíno, mas de outra circunstância...

- Eu estava no exílio e foi lá que percebi a importância do Eusébio. Ele conseguia estabelecer uma ponte, onde as pontes estavam todas a ser quebradas pela Guerra Colonial. Assisti, pela televisão, em Argel a jogos da Seleção Nacional em que militantes do MPLA, do PAIGC e da FRELIMO torciam por Portugal, em grande parte por causa do Eusébio e do Coluna.

JMD - A propósito do futebol como traço de união da lusofonia, em 1986 fui a Moçambique, numa digressão do Benfica, que coincidiu com o Mundial do México. Depois de termos derrotado a Inglaterra, por 1-0, o principal jornal do Maputo titulava «Grande vitória da Seleção Nacional», isto 11 anos depois da independência de Moçambique.

VS - Eu também tenho uma história para partilhar. Uma vez fui convidado para dar uma entrevista a uma rádio de Luanda e perguntaram-me o que é que eu achava da Seleção Nacional. Confesso que conhecia pouco o futebol angolano e hesitei, mas logo me disseram que estavam a falar da Seleção Nacional portuguesa… O regime de Salazar percebeu pouco este potencial?

- Salazar tinha uma obstinação, que era aguentar as então províncias ultramarinas. Mas era pouco subtil e pouco científico. Aliás, não deixar sair o Eusébio para o estrangeiro comprova-o. Mas quem fez a Guerra Colonial percebeu bem a importância do futebol português. Porque se havia um Benfica-Sporting ou um Benfica-FC Porto, a guerra parava e trocavam-se bilhetes sobre o jogo. Aconteceu comigo a caminho de Nambuangongo, antes das sete curvas, e esse também foi um momento bastante complicado.

VS - É curioso porque teve todos os tipos de elogios dos seus comandantes. Apesar de ser um homem completamente contra o regime, foi um combatente duro, também.

- Fiz aquilo que tinha que fazer, que era proteger os meus soldados.

VS - E quando falava com homens como Agostinho Neto ou Amílcar Cabral, eles compreendiam isso?

- Compreendiam. Os homens de guerra compreendem-se uns aos outros.

VS - Durante o exílio na Argélia via os jogos em casa de Tito de Morais?

- Sim, vi lá o Mundial de 1966. Era lá que se juntavam os exilados nacionais, mas também angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, e todos puxavam por Portugal, como já disse muito por causa do Eusébio, do Coluna, esse grande capitão, um verdadeiro pilar, e do Hilário...

VS - Na Argélia, conheceu Che Guevara?

- Conheci Che Guevara, sim.

VS - O que achou dele? Era realmente um romântico revolucionário?

- Era, era. Ouvi, em 1965, o discurso que fez no Hotel Aleti, em Argel, sobre os dois imperialismos [foi a última aparição pública de Che Guevara]. Eu vivia numa casa onde havia muitos refugiados latino-americanos e uma noite ele foi lá conversar com aquele que devia ser o coordenador da equipa e trocámos algumas impressões. Era um homem reservado, ou pelo menos não falava à vontade com quem não conhecesse suficientemente.

VS - Também todos nós temos uma ideia de que Álvaro Cunhal era um homem reservado. Como viveu na mesma casa que ele, em Argel, durante algum tempo, saberá se era mesmo assim…

- Sim, Cunhal era um homem reservado na política e na sua atividade pública, mas no convívio pessoal não era. Era um homem afável, que gostava muito de conversar, contar histórias, ouvir histórias, falar de cinema, falar de poesia, falar de literatura…

JMD - Era um homem de cultura…

- Era um homem da cultura que aprisionou um pouco a sua alma para ser secretário-geral do Partido Comunista. Podia ter sido um bom escritor, um bom romancista. Escreveu, pelo menos, um conto, «Cinco Dias, Cinco Noites» que eu e a Sophia [de Mello Breyner], com quem tive uma relação muito especial, fraterna, apreciávamos muitíssimo. E desenhava bem. Aliás, nas reuniões do Conselho de Ministros também desenhava, e o Almeida Santos, no fim, ia apanhar os desenhos que ele entretanto tinha deitado no caixote do lixo.

VS - No seu tempo de exílio, tanto em França como depois na Argélia, que importância teve o jornal A BOLA?

- Lia sempre. Lia A BOLA quando estive na guerra, quando estive na cadeia e deixavam entrar aos jornais, e na Argélia, onde chegava vinda de Paris. Era o tempo do formato grande e de grandes jornalistas. O rigor da escrita era muito grande e o rigor de análise também.

VS - Os grandes escritores e os grandes desenhadores portugueses, como Stuart Carvalhais, Pargana, Francisco Zambujal e agora o Luís Afonso, sempre colaboraram com o jornal…

- A primeira coisa que vou ver quando compro o jornal é o Luís Afonso. É muito bom.

O BENFICA

JMD - O Benfica continua a mexer consigo?

- Mexe, com certeza que mexe. A minha paixão inicial foi a Académica, mas já não é o que era no meu tempo. Os jogadores eram estudantes e chegámos a ter uma equipa onde havia muitos licenciados, em que nos reconhecíamos e que nos representava. Quando a Académica daquele tempo entrava em campo, éramos todos nós que entrávamos em campo! Coimbra era bem diferente também nesse tempo.

JMD - Voltando ao Benfica…

- Passei a ser do Benfica na emigração, quando percebi a dimensão e a importância do clube. O que representavam Eusébio e Coluna para os emigrantes era fenomenal. Outros clubes também eram relevantes, mas o Benfica era mais. É isto que me manda a verdade dizer. Um jogo do Benfica era uma ligação ao País, era uma forma de estar aqui. Mas também via, estando no exílio, a Seleção Nacional no estrangeiro. Fui ver um jogo a Bruxelas, em que perdemos, por 0-3, e quando tocou o nosso hino os belgas assobiaram. Nós chamamo-lhes à atenção porque era o hino da nossa Pátria, que nada tinha a ver com o regime. Tivemos uma desavença, mas eles depois perceberam e pediram-nos desculpa.

VS - Gostava mais desse futebol, ou do que temos agora?

- O futebol era mais lento e tinha mais espaço. Aliás, vemos isso nos filmes antigos. Havia jogadores com uma técnica extraordinária, que podiam exibir. Mas é difícil comparar. Hoje, o futebol não é sempre interessante.

JMD - O futebol ou aquilo que envolve o futebol?

- Do que envolve o futebol é melhor nem falar. Mas mesmo os jogos do campeonato português vejo com dificuldade.

VS - Nem mesmo o Benfica?

- Nem o Benfica, aliás, passa-se qualquer coisa de bastante estranho no Benfica: pode ganhar a grandes equipas, mas é capaz de perder com qualquer equipa. Há qualquer coisa que não está bem no Benfica. Não sou especialista, mas esta equipa não me convence.

VS - Na presidência anterior, Luís Filipe Vieira pedia-lhe opiniões?

- Por vezes era chamado a dar algumas opiniões. O Vieira falava bastante sobre a equipa do Benfica.

JMD - Com o Rui Costa já não acontece tanto…

- O Rui Costa é de outra geração, não tenho a mesma confiança com ele. Mas apreciei-o como jogador e aprecio-o como presidente do Benfica.

VS - E deste treinador, o que acha, é alemão demais para o Benfica?

- Não compreendo bem este treinador e parece-me que por vezes ele não compreende bem o jogo.

SELEÇÃO NACIONAL

JMD - Até onde pode ir, no Euro-2024, a Seleção Nacional?

- Temos uma grande Seleção, oxalá não aconteçam infortúnios, que alguém se lesione, ou isso. Mas também devo dizer, e eu sou um admirador do Ronaldo, que acho que a Seleção joga melhor sem ele. Não sei se deixam que o tirem, e por vezes parece-me que não há coragem para dizer que sem o Ronaldo o coletivo da flui melhor e jogam com alegria, não estão sempre com a preocupação de ver onde está o Ronaldo, para passar-lhe a bola. O Ronaldo não tem culpa disso, mas condiciona grandes jogadores, como o Bruno Fernandes ou o Bernardo Silva.

JMD - Podemos ser outra vez campeões da Europa?

- Acredito que temos jogadores para isso e que a Seleção tem valor para isso.

VS - Como é que viveu 2016, aquela vitória épica, em Paris, sobre a França?

- Com uma grande emoção. Estava na praia de Altura e vi o jogo na televisão com a minha mulher. Foi uma emoção extraordinária, embora a Seleção não me tenha agradado, com aqueles empates todos. Mas aquela final...

JMD - Recordo que enviou, durante a competição, através de A BOLA, uma mensagem ao engenheiro Fernando Santos, que lhe respondeu…

- Vivemos uma alegria fantástica, e não vou tirar mérito à vitória. Era muito difícil ganhar à França em Paris. Os franceses já tinham tudo preparado para a festa e depois tiveram que esconder os autocarros.

JMD - Eu e o Vítor Serpa assistimos a uma coisa fantástica depois da final, já a noite ia alta, que foi o Arco do Triunfo cheio de portugueses e argelinos, com as respetivas bandeiras, os nossos a celebrar a vitória de Portugal, e os outros a celebrar a derrota da França…

- Quem viveu lá fora e conheceu a emigração portuguesa sabe a importância que uma coisa dessas tem. Muitos portugueses nasceram outra vez nesse dia...

«CÃO COMO NÓS»

VS - Há pouco falou em Sophia de Mello Breyner, sei que é caçador e pergunto-lhe se chegou a caçar com o filho, Miguel Sousa Tavares?

- Sim, cacei com o Miguel. Hoje há uma cultura superurbana que divide o País em dois, fratura-o entre uma cultura do campo, rural, e a cultura urbana. Parte dos miúdos que vivem hoje na cidade nunca foram aos pardais, nunca andaram aos ninhos, nunca viram um lagarto, nunca apanharam rãs, e não têm ideia do que é a caça nem da relação com a natureza que implica. E com os cães também...

VS - As crianças hoje são mais controladas?

- Os meus filhos, que andaram no Liceu Francês de Lisboa, ainda jogaram à bola na rua, ali perto da igreja de Fátima. Os meus netos já não jogaram. Já ninguém deixa uma criança sair para a rua para jogar a bola.

«Se havia um Benfica-Sporting, a guerra parava e trocavam-se bilhetes sobre o jogo... Aconteceu comigo a caminho de Nambuangongo»

VS - Estão tempo demais com os aparelhos digitais?

- Tenho dois netos de 19 anos que jogaram nos iniciados do Belenenses. Mas às crianças, hoje, eu próprio não deixaria que jogassem à bola perto da igreja de Fátima. Antes, as pessoas pelo menos iam passar férias ao campo, às aldeias. E tinham esse contato com a natureza, aprendiam a nadar na ribeira, no rio, a subir às árvores, a subir às noras e a ir à caça e perceber a beleza da caça, a beleza do que é caçar com um cão…

JMD - Aliás, uma das suas obras, que já vai na 31.ª edição, é «Cão Como Nós». Aquele cão marcou-o muito?

- Marcou toda a família. Foi um cão que durou muito tempo, 17 anos, e durou tanto porque não nos queria deixar. Os cães daquela raça não costumam durar tanto…

JMD - Era um Épagneul Breton?

- Sim era um Épagneul Breton [chamava-se Kurika] que tinha uma super-afetividade e não gostava de ficar sozinho. Zangava-se. Queria estar sempre perto de alguém da família…

CAMPEÃO NA NATAÇÃO

JMD - É verdade que era um pescador radical, que entrava pelo mar da Foz do Arelho para pescar à cana?

- Sim, ia pescar à amostra [depois do lançamento vai-se recolhendo a linha para o peixe atacar a amostra que está presa ao anzol], mesmo quando o mar estava puxar bastante. Mas nunca me preocupei porque sou bom nadador, fui campeão nacional e fiz parte da Seleção. Por isso, não tinha medo de me afogar no mar, que conhecia bem. Quando há qualquer problema, não devemos lutar contra ele. É preciso deixar-se ir, até o mar dar a volta…

JMD - Quer contar um pouco melhor essa sua faceta de campeão de natação?

- Olhe, até dá para mostrar o que era o País antes do 25 de Abril. Pertencia à equipa da Académica, que era a segunda melhor equipa de natação do País, e em Coimbra, cidade universitária, não havia piscina para nadar no inverno. Iniciávamos os treinos em junho ou julho, e quando começávamos a estar mais ou menos em forma, acabava a época.

VS - E durante o Inverno, o que fazia?

- Fazia exercícios, ginástica, mas não nadava…

JMD - Qual era a distância que preferia?

- 100 ou 200 metros, estilo livre. Fui campeão nacional em 200 metros e vice-campeão nos 100. E podia ter sido jogador de futebol. Ainda andei nos juniores da Académica, mas não me agradava muito o ambiente do futebol de competição. Também talvez não tivesse a mesma habilidade que tinha para a natação.

JMD - Tinha mais habilidade para a natação?

- Na província era dos melhores, se não o melhor, não é? E no futebol havia bastantes como eu, ou melhores do que eu.

OS INTELECTUAIS E O DESPORTO

VS - Às vezes é até difícil de explicar do ponto de vista social a força extraordinária do futebol…

- Sim, é uma força colossal. Hoje em dia estão as coisas estão um bocadinho mais mecanizadas, mas a paixão mantém-se. A televisão também tem um grande papel nisso, embora às vezes haja transmissões a mais, o que satura e banaliza.

JMD - Costuma ver jogos na televisão do campeonato português ou de outros países?

- Vejo sobretudo jogos de Espanha e Inglaterra. São mais intensos, mais competitivos e se calhar mais puros. Toda a gente ataca, e os jogadores não se atiram para o chão e o jogo dura o tempo todo. Em Inglaterra é impossível haver fitas como aquelas a que assistimos aqui em Portugal.

VS - E alguns jogadores portugueses quando chegam a Inglaterra têm dificuldades...

- É verdade que sim, até perceberem que não vale a pena caírem porque o árbitro não apita.

JMD - Sinto que há intelectuais portugueses que depreciam o desporto, nomeadamente o futebol, não sei se por snobismo. Sente esse fenómeno presente?

- Há muito preconceito e snobismo. Mas também conheço muitos intelectuais, e dos melhores, que têm paixão pelo futebol, e que são dos mais variados clubes. Muitos dos meus amigos, quer da política, quer das letras, são adeptos do futebol. Como era a Sophia, que gostava de ver futebol; como era o Torga, adepto da Académica, que ia aos jogos. Quem não tem complexos, não precisa de ser snob, basta-lhe ser genuíno e natural. Outros, têm que se fazer especiais e acham que é chique, ou que dá estatuto, desprezar o desporto e o futebol.