Uma simples homenagem a  José Maria Pedroto (artigo de Manuel Sérgio, 357)

Espaço Universidade Uma simples homenagem a  José Maria Pedroto (artigo de Manuel Sérgio, 357)

ESPAÇO UNIVERSIDADE07.01.202115:01

Há dois anos, se não estou em erro, findei assim um artigo, para o jornal A BOLA: “No dia 7 de Janeiro de 1985, faleceu José Maria Pedroto – o homem que sabia que não sabia”. De facto, ao evocar, passados 36 anos sobre a sua morte, a memória de José Maria Pedroto, múltiplos e contraditórios sentimentos atravessam o meu espírito. Tenho a perceção de que a época em que viveu e exerceu a sua profissão são anos passados, definitivamente sepultos. Esqueceram-se já as condições técnicas e tecnológicas, as ideologias e os anseios daquele tempo ainda animado pelo frémito aguerrido e promissor da Revolução dos Cravos.

Hoje, em trinta e seis anos (tantos são os anos que nos separam de 1985) em pleno hipercapitalismo cultural, vive-se muito, percorre-se o mundo todo em algumas horas, o mais cego individualismo e o mercado mais sôfrego governam a economia, a sociedade, a política. “Ao mesmo tempo que o mercado e as indústrias culturais fabricam uma cultura mundial caracterizada por uma forte corrente de homogeneização, assiste-se também à multiplicação das solicitações comunitárias de diferença: quanto mais o mundo se globaliza , mais alguns particularismos culturais aspiram a afirmar-se nele. Uniformização globalitária e fragmentação cultural caminham a par” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A Cultura-Mundo – resposta a uma sociedade desorientada, edições 70, Lisboa, 2010, p. 23). E termos como consenso, autoridade, disciplina, certeza, dogma, tradição, já mal se encontram, nos jornais, nas edições recentes, na Informação em geral. O Comte advogou a necessidade do “dogma”, no conhecimento científico. Michael Polany (cfr. Science, faith and society, London, 1946) esboçou uma teoria social, para as ciências, na qual as palavras fé, autoridade e consenso assumiam um importante papel. Lembremos a definição de paradigma de Thomas Kuhn: “são as realizações científicas,m universalmente reconhecidas que, durante um certo tempo, fornecem problemas, soluções, modelos, para uma comunidade de profissionais” (The Structure of Scientific Revolutions, Phoenix Books, Chicago, 1964). Em Portugal, após o 25 de Abril de 1974, arrotavam democracia e socialismo os que, no dia 24 de Abril do mesmo ano, transpiravam a Ordem que Salazar ordenava. E, por entre este caos embaraçante, onde brilhava uma luz como a que levou os Magos a Belém? É que, se é verdade que não se faz política (ou desporto) com princípios tão-só, sem eles também se torna impossível uma orientação que não faça das reformas meros remendos…
 

Ora, no futebol português (direi mesmo: no desporto português) dois homens (um dirigente e um treinador de futebol) levaram a cabo uma “revolução científica” que não tem par, em Portugal, indiscutivelmente, e (talvez) no mundo todo. Digo os seus nomes, sem qualquer receio: Jorge Nuno Pinto da Costa e José Maria Pedroto (escrevo os nomes, por ordem alfabética). Peço licença, neste momento, para ler Alberto Caeiro, um dos heterónimos do genial Fernando Pessoa:
 

                                                “Sou um guardador de rebanhos.

                                                O rebanho é os meus pensamentos

                                                E os meus pensamentos são todos sensações.

                                                Penso com os olhos e com os ouvidos

                                                E com as mãos e os pés

                                               E com o nariz e a boca.

                                                Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

                                               E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

                                                Por isso, quando num dia de calor

                                                Me sinto triste de gozá-lo tanto,

                                                E me deito ao comprido na erva,

                                                E fecho os olhos quentes,

                                                Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

                                                Sei  a verdade e sou feliz”.

Nas minhas aulas, tentava dar um novo e flagrante viço ao que dizia, com uma ou outra frase que, em pouco, procurasse dizer muito. Como esta: “Só se sabe aquilo que se vive” – uma frase que, no mundo dos imprevistos e dos contrastes, que a nossa vida é, explica e legitima, muito do trabalho excecional, mas breve, de José Maria Pedroto e a direção, conceptualmente elaborada e baseada no legado de Pedroto, de Jorge Nuno Pinto da Costa. É evidente que o que o Sr. Pinto da Costa diz e faz, ao leme do F.C.Porto, não se resume, no que ao radical fundante diz respeito, ao que escutou ao Sr. José Maria Pedroto. O Sr. Pinto da Costa já provou aos mais ceguinhos que tem luz própria e tão intensa que lhe antevejo um lugar irrecusável nas antologias futuras da arte de bem governar um clube de futebol. Mas era impossível conviver com o grande Pedroto e não descobrir, em larga margem do que defendia, o que o futebol tem de perene. Uma noite, no Hotel Tivoli, em Lisboa, com muita ousadia à mistura, interroguei-o: “Sei bem que nada sei de futebol, diante de um profissional  da sua estirpe. Mas diga-me, se fizer o favor, o que tem aprendido de mim que o ajude no exercício da sua profissão?”. E ele, sorridente, simpático: “É que o meu amigo diz diferente”. E acrescentou: “Não sei se diz melhor, se diz pior – diz diferente! E é o diferente que eu quero conhecer!”. Gaston Bachelard observa, na sua obra magistral La formation de l’esprit scientifique – contribution à une psychanalyse de la connaissance scientifique, que uma “psicanálise do conhecimento” deveria desnudar o nosso inconsciente cognitivo newtoniano-euclidiano (ou “conhecimento tácito”, no entender de Polanyi) e desse modo facilitar a interiorização de novas normas cognitivas. Um exemplo: por que persiste a mecânica newtoniana nalguma Educação Física e nos treinos de um certo Desporto?          

Não sou um teórico da “revolução permanente” (o Sr. Pedroto, se bem o compreendi, não o era também) mas não posso deixar de salientar a relevância “epistemológica” (acrescento eu) que ele imediatamente reconheceu, na descontinuidade, na história das ciências. Posso adiantar, sem qualquer receio, que ele entendeu que a invenção, a inovação, a criação, a descoberta são algo mais do que simples problemas residuais, no âmbito de uma área do conhecimento. Logo no primeiro dia que peregrinámos (há 40 anos!) pelo “corte epistemológico”, pela “mudança de paradigma”, pelas “revoluções científicas”, pelo conceito de “episteme”, etc. , logo nesse dia Pedroto sorria diante das minhas palavras que lhe terão deixado “um sulco na alma” (assim mo disse). Intrigado, perguntei-lhe: “O que significa esse seu sorriso?”. Nesse momento, ele tomou a palavra e com uma convicção que me impressionou: “Sorrio, porque as suas palavras confirmam o que o Jorge Nuno e eu pensamos, acerca do F. C. Porto. Perdoe-me a minha franqueza: muito antes de o escutarmos, já sabíamos o caminho a seguir. Mas é consolador ouvi-lo, porque traz mais certeza às nossas certezas e conhecimento aos nossos conhecimentos”. E, manifestando uma insaciável fome de saber, prosseguiu: “Também, no F.C.Porto, precisámos e precisamos de fazer ruturas e cortes e mudanças de paradigma. Também nós ficámos romanticamente isolados de alguns “portistas” que nos abandonaram. Mas começámos a ganhar e havemos ainda de ganhar muito mais”. Jorge Nuno Pinto da Costa e José Maria Pedroto já têm um lugar indiscutível, na História do Futebol Português, como dinamizadores de êxitos inesquecíveis e como refundadores do F.C.Porto (e refundadores, porque rebeldes a todo o conformismo, porque foram um só, em duas pessoas distintas).

Não, José Maria Pedroto (direi o mesmo de Jorge Nuno Pinto da Costa) não era um filósofo, mas havia nele o espírito crítico, a predisposição intelectual, um certo hábito mental, típicos da Filosofia. Tinha defeitos? Quem os não tem? Aliás, quem os não tem que atire a primeira pedra, como Jesus Cristo aconselhava, numa das páginas mais belas do Evangelho (Jesus Cristo, sim, era tão perfeito que só podia ser Deus). Privilegiando sempre um ideal de plena inteligibilidade, José Maria Pedroto sabia pensar o futebol, com uma análise lógica incomparável. O Prof. José Neto, meu querido Amigo também,  que foi seu adjunto, relembra-o inúmeras vezes. Foi de facto seu adjunto, num trabalho, pioneiro em Portugal, de observação, investigação e análise do jogo. Eu mesmo não esqueço esta frase do Mestre Pedroto que bem retrata o seu trabalho, no futebol: “Diz-me como jogas e dir-te-ei como treinas e diz-me como treinas e dir-te-ei como jogas”. O professor João Mota, ainda felizmente vivo, pode também esboçar o retrato do homem arguto, do  homem recto, do homem justo que foi o Sr. José Maria Pedroto. Uma tarde, no Hotel Tivoli, em Lisboa, encontrei, em pacata reunião, o Dr. José Lourenço Pinto, advogado ilustre e atual presidente da Assembleia Geral do F.C.Porto, o treinador e jornalista Fernando Vaz e José Maria Pedroto. O Dr. José Lourenço Pinto era o categorizado mentor jurídico de um sindicato de treinadores de futebol, que estava prestes a nascer e de que Pedroto e Fernando Vaz seriam os líderes. Apresentado por José Maria Pedroto, conheci, pessoalmente, nesse dia, o que hoje é um meu “amigo do peito”, o Dr. José Lourenço Pinto. Polemizando com gosto, um ponto houve em que sempre estivemos de acordo, o Sr. Pedroto e eu: o futebol é mais do que pontapés na bola! Quando oiço e vejo tanta gente a tentar interpretar o futebol, por vezes lastimo que esqueçam o essencial: o futebol, como desporto que é, deverá estudar-se e praticar-se, como uma nova ciência humana. Trata-se de uma tese que defendo, há mais de 40 anos! Começava eu então a conhecer o Sr. José Maria Pedroto – o treinador de futebol que sabia que não sabia!... E termino assim: está por fazer um exame exaustivo da influência de José Maria Pedroto, na renovação do futebol português!   


Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto