Espaço Universidade Mãezinha já sou doutor (artigo de José Augusto Santos, 20)
O meu amigo Hernâni diz que eu sou muito egocêntrico o que é redondamente mentira. O que eu gosto é de falar de mim e das minhas histórias o que é diferente de centrar o mundo em mim. Eu sei que existem outras pessoas, mas não as conheço tão bem como a mim e, por isso, para não cair no erro de as analisar sem fundamento remeto-me a mim e às minhas circunstâncias. De vez em quando, vem-me à mente uma análise que um crítico literário fazia a alguma literatura construída por jovens que estudam na universidade as coisas das letras. Dizia ele que os novos literatos escrevem muito bem só que falham na mensagem já não tinham mundos interiores para desbravar. Eu, pelo menos, tenho muitos mundos para escalpelizar. Posso não conseguir ter a arte para ir buscar ao tinteiro as ideias que me justifiquem, mas que tenho muitos mundos é inegável. Há alguns de quem dizem que a sua vida dava um filme. A minha vida dava uma cinefilia completa, com filmes de terror, amor e aventura.
Hoje, vou contar uma história interessante que, como é normal em mim, saiu do que é a normalidade. O processo do meu doutoramento. Antes disso um aparte. Não sei se há muitos antigos combatentes da guerra do Ultramar que tenham regressado a casa com a “moleirinha” avariada e tenham consigo fazer um doutoramento. Deve haver alguns, mas poucos, pois ter a capacidade de vencer o stresse pós-traumático com voos noosféricos consequentes não é tarefa fácil. Não estou a falar dos “veraneantes” em Luanda, Lourenço Marques ou Bissau. Estou a falar daqueles que com uma arma nas mãos passaram muito noite de vigília no mato e a dispararam em várias ocasiões.
Há uma confissão que tenho de fazer para ser honesto. Eu vim da guerra meio-maluco, mas tenho de reconhecer que fui para a guerra maluco inteiro. Por isso, a guerra atenuou a coisa. Olhem lá não estou a brincar. Tirando o perigo a pairar como uma sombra sobre a nossa cabeça, coisa de que nos esquecemos ao fim de uma semana, nunca na guerra passei por algo parecido com os excessos e desconfortos induzidos pela minha preparação nos Rangers. Foi bem seguir o lema desportivo fundamental “treinar duro para competir fácil”. Bem, fiz a guerra e regressei a casa com uma ambígua certeza – não saber quem era nem para onde ia. E, para acalmar as angústias existenciais que o sem sentido da vida catalisam, optei por entrar na mais angustiante das existências – ser empregado bancário. A coisa durou um ano e nem o Sartre me salvou. Tive de fugir desse Eldorado o mais rapidamente possível antes que o fato e gravata me ficassem indelevelmente colados ao corpo.
Abreviemos a coisa e passemos para o que interessa. Entrei, com alguma coragem diga-se, nesse mundo solar e maravilhoso que se chama Desporto e Educação Física. E, depois de muitas vicissitudes, cheguei ao doutoramento. Entreguei a tese a 8 de fevereiro e o prazo para a entrega terminava quatro dias depois. As razões para ter andado devagar foram várias, mas nenhuma relacionada com o desporto favorito de muitos portugueses – a sornice. Só de uma vez, o oxímetro do Centro de Medicina Desportiva esteve avariado nove meses e eu sem poder fazer as provas. O Mário Silva, que era na altura o melhor especialista de 1.500 metros de Portugal, treinado pelo meu ex-aluno, colega e amigo Ramiro Rolim, e que eu queria na minha amostra, veio duas vezes de Braga ao Porto para fazer os testes. Das duas vezes a maquineta avariou e já não houve uma terceira possibilidade, perdi o Mário Silva para o meu estudo. Assim, os prazos foram-se esgotando, mas sem total culpa minha. Alguma teria, pois, poderia ter andado um pouco mais depressa se as minhas ocupações fora da faculdade não me tivessem ocupado tanto tempo. Contudo, trabalhei bem e no mesmo ano do meu doutoramento 1995 editei um livro “A Dietética do Desportista” prova que não era sornice o meu mal.
Vamos então analisar parte do processo. O meu projeto inicial era realizar um estudo sobre as alterações microestruturais induzidas no músculo esquelético por diferentes tipos de treino de força – máxima, explosiva e resistência de força. Tinha alunos disponíveis para o estudo, tinha adquirido o aparelho para o treino de força (mais uma vez o António Marques a resolver o problema), tinha o técnico das biopsias preparado, o meu colega médico José Alberto Duarte. Ele tinha treinado em mim. Fui o primeiro biopsiado desportivo em Portugal. O meu músculo andou a ser mostrado aos alunos nas aulas de Biologia durante vários anos. Parece que a nível microestrutural eu era muito bonito. Por razões que não julgo conveniente trazer à colação neste momento esse projeto falhou. Resolvi fazer uma coisa mais aplicada e pragmática. Circulava, no início dos anos de 1990, um livro do Carlos Alvares do Villar “La Preparación Física nel Futbol basada nel Atletismo” que era quase uma bíblia para muitos preparadores físicos principalmente em Espanha. Juntando as duas populações a que eu tinha acesso – futebolistas e velocistas, meio-fundistas e fundistas do Atletismo resolvi comprovar que as adaptações induzidas pelo futebol tinham pouco que ver com as do Atletismo, pelo que a utilização de exercícios desinseridos do contexto futebolístico só poderiam fazer parte da preparação inespecífica do jogador de futebol, ou seja, poderiam ajudar a resolver alguns problemas como a melhoria da velocidade, da força e da flexibilidade em jogadores que tivessem défices nestas vertentes da condição física. Nunca poderiam seriam considerados essenciais para o futebol, mas meros exercícios complementares.
Bem, apontaram-me como orientadores do meu processo de doutoramento duas ínclitas figuras que me recuso a dizer o nome pois ainda são vivos e poderiam vir atrás de mim para me bater. Um português, outro estrangeiro que em português só sabia dizer “ai lôve iú”. Paralelamente à recolha dos dados comecei a fazer a revisão da literatura pois estive cerca de um ano a estudar a imensa bibliografia que compulsei. Como o meu orientador “camóne” não me podia ajudar muito na estruturação da tese em português foquei-me no orientador luso.
Enviei-lhe cerca de 50 páginas para ele dar o seu veredicto e apontar eventuais correções. Ao fim de um mês: - Professor, por favor, diga algo sobre o que escrevi. Ao fim de três meses: - Professor, por favor, diga algo sobre o que escrevi. Ao fim de seis meses: - Professor, por favor, diga algo sobre o que escrevi. Desisti do orientador e comecei a escrever a tese sozinho com a profunda ajuda do José Maia na Estatística e a ajuda do José Soares e do Júlio Garganta em alguns capítulos do documento.
- Professor a tese está acabada! Por favor passe a autorização para eu a entregar. Olhou para mim como se eu fosse marciano, assinou o documento e desandou como se eu tivesse sarna.
Chegou o momento. Preparei a defesa com a exposição de slides que estavam numerados de 1 a 40. Como eu tinha o tempo limitado e cada slide era um mundo de informação reduzi o número para 18. No dia anterior, treino a minha exposição no salão nobre da reitoria com o França, o homem dos meios audiovisuais, a ajudar na parte técnica da tarefa. A certo momento o França dá uma de aselha e o carreto com os slides cai ao chão espalhando slides por todo o sítio. Um dos slides, com informação essencial sobre o VO2max comparativo entre futebolistas e corredores do Atletismo, desliza para debaixo do estrado e por lá ficou. Com certeza, ainda lá está hoje.
No outro dia, quando chego ao ponto de apresentar esse slide e vejo que faltava, com uma calma olímpica que eu desconhecia em mim, disse: - Era suposto estar aqui um slide com a seguinte informação. E passei a discorrer sobre o slide em falta pois tinha toda a tese memorizada quase até às vírgulas. Tinha de acontecer algo mesmo no momento terminal. Nunca a vida me aconteceu de forma calma e natural. Sempre a fazer surf nas vagas alterosas das acontecências existenciais.
Todos os elementos do júri do meu doutoramento me outorgaram a nota máxima: Suma cum lauda. Houve um que não me atribuiu essa nota. Sabem quem? Se disseram o meu orientador português, acertaram.
Eu tinha de ser mesmo original. Devo ser o único caso no mundo académico em que o orientador deu uma nota inferior ao júri ao seu doutorando.
Mãezinha, já estavas no céu quando me doutorei, mas como podes ver o teu filhinho querido até nos momentos pró o contra apareceu sub-reptício.
Já agora uma coisa nada supérflua. Eu pensava que quando realizasse o doutoramento ia ficar assim uma espécie de guru iluminado com resposta para tudo e preparado para definir as novas tábuas da lei. Pensei que quando fosse na rua os transeuntes se baixassem em referência à minha suprema sabedoria. Nada disso aconteceu e somente ganhei uma superior consciência da minha ignorância. Faz-me lembrar a seguinte história. Um dia, um professor muito vaidoso, sentou-se num banco por detrás do qual estava um nicho de um santo. Quem passava por lá reverenciava o santo julgando o professor que era o reconhecimento da sua excelência. Quando saiu do banco já ninguém lhe tirava o chapéu ou o reverenciava. Isto significa o quê? Que nós só momentaneamente transportamos o prestígio que a Universidade nos outorga. Fora disso nada mais somos que simples homens e mulheres condicionados pelas acontecências da existência. Mãezinha! Apesar de tudo fui feliz.