Entrevista A BOLA: «É preciso ser-se meio doido para ir à baliza»

Benfica Entrevista A BOLA: «É preciso ser-se meio doido para ir à baliza»

NACIONAL28.06.202321:30

Nesta parte da entrevista concedida a A BOLA, o guarda-redes Helton Leite, ex-Benfica e atualmente na Turquia (Antalyaspor) fala sobre uma «posição ingrata» e da «classe mundial» de Diogo Costa.

- É sempre importante ser-se titular, mas para um guarda-redes isso deve ser ainda mais fundamental, tendo em conta a estabilidade…

- Certo. Mas tudo na vida tem períodos. Quando temos 23, 24 anos, é normal que se trabalhe muito, que se treine com muita intensidade e se jogue menos. Porque, por norma, preferem guarda-redes com mais experiência. A não ser que se seja diferenciado, como por exemplo Diogo Costa, que é um guarda-redes de classe mundial. Mas são exceções. De modo geral, os guarda-redes acabam por ter uma maturação mais tardia… porque quando se é novo não existe a experiência tanto de jogo, como mental para lidar com a pressão que o setor obriga. E só se conquista isso jogando. É por isso que aos 28, 29, 30 anos, o guarda-redes precisa de jogar independentemente do clube e da Liga, é preciso jogar. Também porque, tirando algumas exceções, quase ninguém também vai até aos 40 anos. No futebol tudo é bom, mas tem de ser jogado. Porque tudo passa muito rápido. Vou fazer 14 anos de carreira profissional e a sensação é que as coisas têm passado de forma muito rápida. Se calhar quando estamos nos treinos, a meia-hora de finalização parece que demora um ano… mas a verdade é que a carreira passa muito rápido, então temos que aproveitar e não ter medo de arriscar, de sair do clube A para o clube B, ir à procura de jogar. Vamos jogar sempre? Se calhar não. Há lesões, há castigos, há a adaptação, há a concorrência, mas temos de estar sempre disponíveis ao máximo porque aos 37, 38, 39 no máximo a carreira acaba. Então há que aproveitar. É isso que persigo: Quero jogar… porque sei que daqui a alguns anos vou estar de fato e gravata do lado de fora analisando - não tenho intuito algum de ser treinador, mas espero ficar ligado ao futebol na vertente mais administrativa, negocial ou política - mas quero ter a consciência tranquila de que enquanto estive no relvado fiz de tudo para lutar pelos meus objetivos. É um privilégio fazer aquilo que faço e quero aproveitar até ao final.

- O guarda-redes vê o jogo de uma forma diferente dos companheiros, é o jogador mais isolado. É preciso ter uma mentalidade forte para se ser guarda-redes e ultrapassar esse isolamento?
- Tem de ter. Em campo o guarda-redes é único: só ele tem aquele equipamento… não pode ter a mesma cor do equipamento do árbitro, nem do guarda-redes contrário. É uma evidência. Mas é isso, o guarda-redes precisa ter mesmo uma mentalidade muito forte. Porque os restantes companheiros podem falhar dez golos de baliza aberta; se sofrer um golo e perder o jogo, a culpa vai ser do guarda-redes. Até pode nem ter errado, mas vai ficar toda a gente a dizer ‘esse guarda-redes atrai o golo’. Tem que ter uma tranquilidade muito grande, porque a ação de um guarda-redes acaba na tarefa defensiva. É um atleta de exceção… um guarda-redes não pode pensar, não pode dizer ‘hoje vou entrar e defender três bolas’, não sabe se vai ser assim, pode defender 15 e pode não defender nem uma. Às vezes há bolas que não são defensáveis. É alguém que age dentro de campo na parte defensiva. Isso implica uma maturidade e uma consciência muito grande de que independentemente de tudo o que se passar no jogo o que interessa é o próximo lance, a próxima defesa, e isso implica estar a um nível altíssimo de concentração durante os 90 e tal minutos que dura o jogo. Porque num lance, um remate pode decidir um jogo. É exatamente por isso que quanto mais experiência um guarda-redes tem mais consegue ter essa consciência de que interessa estar presente no jogo o tempo inteiro. É uma profissão apaixonante. E a cada dia que passa tenho mais prazer em jogar e falar sobre ela.

- Mas é uma posição ingrata?
- Muito ingrata. Acho que é preciso ser-se meio doido para se ser guarda-redes. Tem de pensar de uma maneira diferente, saber que se fez uma boa exibição não pode empolgar-se e se não estiver a correr muito bem não pode desesperar. Tem de estar sempre igual. Acredito que pela postura o guarda-redes já intimida o adversário, ou dá-lhe confiança, empolga a outra equipa. Se você entra em campo e vê um guarda-redes sem confiança, inseguro… a outra equipa pensa ‘eles podem até ser melhores do que nós mas vamos conseguir vencer porque o guarda-redes não transmite segurança’. É uma posição muito mental, tem sempre que demonstrar que está presente, que está confiante, que está a transmitir segurança aos companheiros. O guarda-redes pode fazer essa diferença. Às vezes, simplesmente pela maneira como se comporta. Não precisa ter um nível altíssimo, classe mundial, mas alguém que impõe respeito. E aí os adversários já falam de maneira diferente… ‘bom a 30 metros não posso rematar, tem de ser a 20’, e aí diminuem as chances deles, a exposição e o risco é menor. É esse jogo mental que é preciso entender. Sim é ingrato, mas ao mesmo tempo é uma posição que tem muita beleza. Hoje vejo muitas crianças que dizem que querem ser guarda-redes, mas não têm a mínima ideia do que vão encontrar.

- Quem é o seu modelo de guarda-redes?
- Quando era novo gostava muito do Van der Sar. Pela altura dele e a elegância que ele tinha na baliza. Depois comecei a gostar muito do Peter Cech, um guarda-redes muito alto, muito seguro. E mais recentemente apreciei muito o Neuer, porque foi alguém que acabou por incorporar-se na preponderância ofensiva da equipa. O Bayern percebeu que com ele o guarda-redes era mais um jogador em campo e o Neuer veio trazer um pouco mais de arte para a posição, porque é importante ter um guarda-redes que se adapta à maneira como a sua equipa joga. Todos eles foram nomes que, em épocas diferentes, tiveram a sua influência e são grandes referências.