O clássico

O clássico

OPINIÃO07.04.202306:25

Duas culturas diferentes, dois estilos de jogo diferentes e hoje duas perspetivas diferentes

Adiferença de pontos num campeonato conta muito pouco para um clássico como o que vai jogar-se esta tarde, na Luz, tarde princípio de noite, mas ainda noite com muita claridade mesmo quando o clássico terminar. Uma tão grande e tão rara diferença de pontos como a que, na realidade, existe entre Benfica e FC Porto, pode, como se sabe, contar pouco para a rivalidade do jogo, e conta pouco, podem os adeptos estar certos disso, e contará, apenas, para que o Benfica, ao contrário do FC Porto, possa jogar com dois resultados e não só com a imperiosa necessidade de vencer, como verdadeiramente têm os atuais campeões nacionais.

Num clássico, o que conta é o espírito que cada equipa consegue criar, a atitude interior de cada jogador, a determinação com que se olha o adversário e cada palmo de relvado e cada segundo de luta. Num clássico, conta o talento, evidentemente, e a força coletiva e os triângulos - sim, os triângulos - que cada equipa consegue desenhar em campo para bater o adversário, progredir no campo, conseguir espaço e, por fim, desequilibrar o suficiente para chegar à oportunidade de golo.

Num clássico como o Benfica-FC Porto, o que conta é a química das duas equipas, o estado de alma, a concentração e o foco. Uma desatenção, uma distração, um comportamento mais relaxado, uma displicência a mais ou uma garra a manos pode ser a súbita morte do artista.

Vejamos as coisas como elas parecem, realmente, ser: não é por estar dez pontos atrás do Benfica que o FC Porto fica menos forte para o jogo de hoje; não é por ter dez pontos mais do que o FC Porto que o Benfica ganhará condições de clara superioridade. 

O futebol é o momento. E ainda que se jogue com fatores emocionais diversos, como sejam a confiança, o lugar na classificação, a perspetiva quanto à consequência do resultado, seja lá o que for, a verdade é que no jogo, o que conta é o que cada equipa será capaz de jogar.

Jogam-se igualmente fatores como o peso da história e da tradicional e a cultura de jogo de cada uma das equipas. Ninguém será verdadeiramente capaz de negar que o Benfica tem muito mais a cultura do jogo pelo jogo e o FC Porto muito mais a cultura do jogo pela estratégia.

Costuma ser o FC Porto muito mais uma equipa de espírito combativo, mais vocacionada para aplicar mais presença física, mais agressiva na procura do espaço e na triangulação; é o Benfica muito mais uma equipa de troca de bola de pé para pé, mais pezinhos de lã, como aqui já lhe chamei, com mais dificuldade nos duelos atléticos, digamos assim, com jogadores habitualmente mais macios, e, por isso, uma equipa que sobrecarrega, nesse sentido, mais os dois centrais, Otamendi e António Silve, eles, sim, a meu ver, os principais pilares do onze de Roger Schmidt.

Com os jogadores que tem, procura Roger Schmidt que a equipa ganhe a bola o mais rápido possível - e o mais perto possível da área do adversário - para poder, mais rapidamente, transitar, e não ter que se desgastar tanto nos duelos se permitir que o adversário construa e progrida. Tem o treinador alemão certamente a noção (assim parece) das maiores dificuldades da equipa sempre que se vê sujeita ao tal combate mais físico. Tirando, talvez, o norueguês Fredrik Aursnes (e mesmo esse, limitado), do meio-campo para a frente a maioria dos jogadores encarnados não é atleticamente forte, joga muito mais na técnica e na velocidade em corrida ou na velocidade de execução do que no combate pela bola.

O FC Porto tem tudo isso e costuma ter mais, porque é a equipa portuguesa que melhor lida com as dificuldades (por força mental) e é a equipa que melhor se adapta estrategicamente ao que um jogo destes habitualmente pede. Por norma, se não tem cão, o FC Porto rapidamente parte para caçar com gato. E se não tiver gato, aposta no rato. É uma equipa mais pragmática

Além disso, goste-se ou não do estilo, o FC Porto tem um grande treinador, ainda por cima muito experiente, muito habituado a ganhar e a saber o que é preciso fazer para ganhar, aspeto tão importante no tipo de jogos como o que previsivelmente teremos esta tarde/noite na Luz, tantas vezes decididos, por exemplo, no detalhe de uma bola parada, num lance mais ousado ou criativo, num remate mais espontâneo ou no melhor aproveitamento de situações de conflito ou tensão.
 
Creio que não é preciso lembrar, por outro lado, como no jogo da primeira volta (em outubro de 2022), mesmo perdendo por 1-0 e tendo jogado tanto tempo com menos um (por expulsão de Eustaquio antes da meia hora de jogo), o FC Porto quase nunca foi verdadeiramente inferior ao Benfica, até pelo contrário, chegou a ser mais dominador e mais perigoso durante mais tempo. É ou não é frequente vermos a equipa portista fazer das tripas coração com mais facilidade do que parece ver-se numa equipa como a do Benfica? Costuma ou não o FC Porto ser equipa muito determinada a fazer dos clássicos jogos suficientemente duros para intimidar o adversário e pô-lo em sentido?

Creio que é consensual esse olhar sobre a equipa portista, apresente-se ela aparentemente mais fragilizada ou com menos talento, e esse mérito é todo do treinador, do espírito que passa aos jogadores, da exigência que impõe e transforma em conduta indispensável, mesmo deitando mão de jogadores como Zaidu, Eustaquio, Manafá, Fábio Cardoso, André Franco, Rodrigo Conceição, Bruno Costa ou Bernardo Folha, para citar exemplos de futebolistas, em níveis um pouco diferentes, mas todos ainda à procura do seu espaço de afirmação no futebol português.

Ou seja, na raiz cultural do FC Porto como equipa, quase não é decisivo quem joga, mas como se joga.

No Benfica, é diferente, porque o Benfica depende muito do talento individual, apesar de Roger Schmidt ter dado à equipa organização e filosofia, estrutura e estilo, tornando-a capaz de dominar melhor os diferentes momentos do jogo. Deve, apesar disso, o Benfica ter a noção que um clássico com o FC Porto, sobretudo um clássico com o maior rival das últimas décadas, é um jogo muito diferente de um jogo mesmo da Liga dos Campeões, e não cair na tentação de se supor capaz de fazer hoje, na Luz, o que fez com equipas poderosas como o Paris Saint-Germain ou Juventus, na fase de grupos da Champions, porque, como todos sabemos, um jogo de campeonato não tem nada a ver com um jogo da UEFA, e a melhor prova disso são os resultados que as grandes equipas das competições da UEFA registam, por vezes, nos seus campeonatos.

Assim sendo, os problemas que uma equipa como a do FC Porto pode hoje colocar ao incontestado líder da Liga são muito diferentes, à partida ainda mais complicado, do que os problemas colocados nos grandes jogos da Liga dos Campeões, onde todos, ou quase todos, procuram, quase apenas, jogar o jogo pelo jogo e debater-se com uma atmosfera bem diferente da atmosfera que envolve, como é o nosso caso, infelizmente, um jogo como um Benfica-FC Porto, desta vez, apesar de tudo, bem menos agressiva do que em anos anteriores, pela simples razão de estarem dez pontos a separar as equipas na classificação do campeonato.

Pode, na verdade, o Benfica jogar mais logo com dois resultados, ao contrário do FC Porto, e isso, à partida, não deixa de ser uma vantagem teórica. Acontece que não raras vezes, essas vantagens transformam-se em obstáculos emocionais, e muitos homens do futebol me têm passado a ideia e a experiência de preferirem que os seus jogadores e as suas equipas não pensem nisso, que pensem apenas em competir, muito determinadamente e muito concentradamente, com o objetivo de vencer o jogo, não ‘à maluca´, como se costuma dizer, mas também sem fazer muitas contas à vida.

O perigo, dizem muitos desses antigos profissionais, é o da serenidade se transformar em displicência, de uma equipa pegar na estratégia e relaxar, e relaxar, num jogo de alto nível, de ritmo intenso e emoção elevada, relaxar, diria, é, normalmente, fatal, porque todos os segundos são de jogo, todos os momentos são de luta e todos os espaços são preciosos.

Deve o Benfica saber o que pode esperar do FC Porto e deve o FC Porto saber o que vale o Benfica.

Do lado do Benfica, o perigo, para Roger Schmidt, será, porventura, o de não ser capaz de impedir que equipa, inconscientemente, possa vestir fato e gala quando o jogo lhe deve exigir fato de macaco.

Do lado do FC Porto, o perigo será o de porventura levar para lá do limite a mais agressiva ideia de jogo e ao extremo, a eventual estratégia de intimidação do adversário, de modo a tirar partido de duelos mais duros.

Como sempre - por muito que nos custe e não o desejemos - muito de como vai correr o clássico dependerá da forma como vier a ser conduzida a arbitragem do jogo.

Em todo o caso, deixo a minha convicção: assistiremos a uma grande arbitragem no campo e a uma grande arbitragem no VAR. Oxalá não me engane. E talvez tenhamos, no fim de contas, um grande espetáculo, digno da homenagem a Eusébio e Fernando Gomes, os dois maiores símbolos da história dos dois clubes, a que A BOLA, na edição que o leitor tem na mão, decidiu fazer apelo.

A bem do futebol!