Henry Kissinger: a paixão pelo futebol do antigo guarda-redes
Henry Kissinger

Henry Kissinger: a paixão pelo futebol do antigo guarda-redes

INTERNACIONAL01.12.202309:47

Heinz Alfred (depois Henry), judeu, jogou em Furth, na Alemanha, onde nasceu e viveu até aos 15 anos. Refugiado nos Estados Unidos a partir de 1938, a paixão pelo ‘beautiful game’ nunca o abandonou

Morreu Henry Kissinger, antigo secretário de Estado norte-americano, uma das figuras mais importantes da política internacional no pós-guerra, prémio Nobel da Paz em 1973, praticante fiel de uma Realpolitik que o levou a aproximar os Estados Unidos da China e a atenuar a guerra fria com a União Soviética, mas que também o colocou ao lado de regimes que não faziam da democracia a sua prioridade. Doutorado por Harvard, cientista político, Henry Kissinger recebeu as mais altas honras académicas ao longo do seu percurso, ao mesmo tempo que conheceu em vida o reconhecimento dos Estados Unidos, que lhe concedeu a Medalha Presidencial da Liberdade.

Mas Henry Kissinger também foi um apaixonado adepto do futebol, que aprendeu a amar na Alemanha, onde nasceu em 1923, em Furth. Filho de uma família judia, que lhe deu o nome de Heinz Alfred Kissinger, mais tarde americanizado para Henry Kissinger, quando em 1938 fugiu com os pais das perseguições nazis, o futuro secretário de Estado passou a infância e a juventude, fizesse chuva, neve ou sol, a ver os jogos do Spielvereinigung Greuther Furth. E nem mesmo o facto de ter emigrado para um país que fazia de outras modalidades o centro das atenções arrefeceu o seu gosto pelo futebol, de que viria a ser peça chave do desenvolvimento nos Estados Unidos.

Aliás, em 2009, a Federação de Futebol norte-americana recorreu à sua influência para ajudar ao sucesso da realização do Campeonato do Mundo de 2018 ou 2022 (que teria conseguido, se não fossem as manigâncias que levaram à atribuição do evento ao Catar, e à posterior intervenção do FBI, que desmantelou uma rede de corrupção na FIFA). Kissinger disse então, a propósito: «Será uma espécie de obrigação ficar por cá, porque em 2022 terei 99 anos.» Faleceu anteontem, e já não verá o Mundial de 2026, que se disputará no México, Estados Unidos e Canadá, e que ajudou a conquistar…

KISSINGER, O PENSADOR

Henry Kissinger, autor de obras incontornáveis no mundo da diplomacia e da política, também pensou muito sobre o futebol, do ponto de vista sociológico, e tem reflexões que devem ser lembradas, como pérolas de sabedoria que são. Numa entrevista ao site do Bayern de Munique, Kissinger disse: «O futebol garante um vício para toda a vida, numa mistura de esperança, miséria e euforia à medida que as expectativas são estabelecidas, satisfeitas e superadas. Tive essa experiência, tal como muitas outras.» Mas foi mais longe na análise, afirmando que «o futebol ao mais alto nível é complexidade disfarçada de simplicidade», sendo, para ele, «um jogo muito diferente dos desportos com os quais as pessoas nos EUA estão mais familiarizadas, nomeadamente o futebol americano e o beisebol». E concretizou, explicando: «Os 11 jogadores devem possuir as mesmas habilidades, especialmente no futebol moderno, onde a diferença entre jogadores ofensivos e defensivos é cada vez mais difusa. Por ser um jogo contínuo, não pode ser dividido numa série de jogadas que podem ser treinadas, como no futebol americano ou no beisebol. O futebol americano e o beisebol deleitam-se com a perfeição das suas repetições; no futebol, há improvisação de soluções para imperativos estratégicos em constante mudança.» Mas, ou não fosse Henry Kissinger um praticante da Realpolitik, outro elemento tinha de ser trazido à colação: «O futebol requer pouco equipamento, além de um par de chuteiras. Todos acreditam que podem jogar futebol. E pode ser jogado espontaneamente por qualquer número de pessoas, a qualquer hora, em qualquer lugar... Portanto, o futebol é um jogo maravilhoso para as massas, que podem identificar-se plenamente com as suas paixões, os seus triunfos repentinos e as suas inevitáveis desilusões.»

KISSINGER, O GUARDA-REDES

Tal como Albert Camus, prémio Nobel da Literatura em 1957, que jogou no Racing Universitaire Algerios, na Argélia, até ser posto fora de jogo por uma tuberculose - e Camus disse que foi no futebol que colheu alguns dos ensinamentos mais importantes que guardou para a vida, afirmando mesmo que o que sabia «sobre moralidade e as obrigações dos homens, devia-o ao futebol» - também Henry Kissinger foi guarda-redes na Alemanha natal, em Furth. E é muito provável que tenha lido Camus, numa coisa de guarda-redes para guarda-redes, quando este afirmou: «Aprendi que uma bola nunca vem da direção que estamos à espera. Isso ajudou-me na vida, mais tarde.» Kissinger teve de deixar as balizas depois de ter fraturado uma mão, mas continuou fiel ao beautiful game e assumiu, numa visita que fez ao clube do seu coração, o Furth, em 2012, que não vive na Alemanha «há mais décadas do que gostaria de admitir», mas continua «a acompanhar a sorte daquela equipa que, na era do profissionalismo com altos salários, foi relegada para a segunda divisão». Aliás, num artigo que escreveu no Washington Post em 1986, o ex-secretário de Estado reconheceu ser «um ávido fã de futebol desde a juventude em Furth, uma cidade louca por futebol no sul da Alemanha, que por alguma razão inexplicável ganhou três campeonatos num período de três anos».

Aliás, nesse mesmo artigo (e é preciso lê-lo no contexto dos tempos em que foi escrito, ainda antes da queda do Muro de Berlim), Kissinger traça um curioso retrato do futebol do país que o viu nascer: «A seleção alemã joga futebol da mesma forma que o seu Estado-Maior se preparou para a guerra; os seus jogos são meticulosamente planeados; cada jogador é habilidoso, tanto no ataque quanto na defesa. (…) Ao mesmo tempo, a seleção alemã sofre da mesma deficiência do famoso plano Schlieffen, no qual se baseou a estratégia alemã na Primeira Guerra Mundial. Existe um limite para a previsão humana; o stress psicológico daqueles que são encarregados de executar manobras excessivamente complexas, não pode ser calculado antecipadamente.»

Numa análise para a Newsweek, Henry Kissinger enfatizou: «Controlar uma bola com o pé ao longo de um campo 100 metros até à baliza adversária, requer capacidades análogas às do ballet. As equipas que se concentram nas habilidades individuais, como os brasileiros surpreendem com o seu virtuosismo e irresponsabilidade. Por outro lado, por vezes, ficam tão encantadas com a sua arte individual que se esquecem de marcar golos e são ultrapassadas por equipas mais concentradas e estrategicamente orientadas.»

KISSINGER E PELÉ

Na segunda metade da década de setenta do século passado, os Estados Unidos fizeram uma tentativa de implementação do futebol (soccer para eles), que teve grande impacto, embora não conduzisse aos resultados massificadores esperados. Com apoios de grandes empresas, como a Coca-Cola e a Warner, o edifício do soccer começou a ser construído pelo telhado, e não pelas fundações, como veio a ser feito décadas depois, e foram contratadas as maiores estrelas (de)cadentes do futebol mundial. Em fim de carreira, Pelé, Eusébio, Beckenbauer, Best, Cruyff, Carlos Alberto e outros iniciaram uma época de galácticos sem precedentes, que teve efeito imediato e forte, mas que não foi a semente pretendida.

Foi nesse contexto que Henry Kissinger ajudou, com o seu prestígio, a que o cromo mais difícil da caderneta mundial, Edson Arantes do Nascimento, Pelé, que se tinha retirado da seleção brasileira após ter conquistado o tri com a canarinha no Mundial do México-70, e pensava terminar a carreira no seu clube de sempre, o Santos, rumasse a Nova Iorque e ao Cosmos, clube detido pela Warner. Numa entrevista de maio de 2016 à Esquire, Pelé não teve dúvidas em afirmar que Henry Kissinger virou a sua vida ao convencê-lo a mudar-se para os EUA: «Foi um pouco difícil decidir ir, porque já me tinha retirado da seleção e tinha resolvido que arrumaria as chuteiras no Santos.» Revelou ainda ter recusado «propostas de Itália e Espanha.»

Porém, segundo o Rei, «o senhor Kissinger veio a São Paulo, convidou-me para tomar café e acabou por convencer-me». Pelé, a princípio cético, «porque o nível de jogo nos EUA não era muito alto», foi sensível à promessa de que haveria investimento no futebol de base e ao pedido de Kissinger para «ajudar a promover o jogo.» Edson Arantes do Nascimento, que não falava inglês, teve algum receio e aceitou comprometer-se por um ano só. Porém, segundo confidenciou: «Quando começámos a promover o futebol tornou-se tudo muito interessante, e com jogadores como Beckenbauer, Eusébio ou Cruyff o interesse subiu e o nível do jogo também e acabei por prolongar o contrato.»