Guardiola ainda não escreveu a última página da história
Pep Guardiola venceu o prémio The Best para melhor treinador (Foto: Sebastian Frej/IMAGO)
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Guardiola ainda não escreveu a última página da história

INTERNACIONAL22.01.202410:15

Hoje, todos querem jogar como ele, mas há quem já olhe mais para a frente; espanhol tem aberto a porta a ideias diferentes; relacionismo terá vindo para ficar?

O futebol tem afunilado nos últimos anos no ataque posicional e a maior parte das equipas joga praticamente da mesma forma. Depois da ascensão do gegenpressing na Alemanha e na Áustria, o Brasil reclama agora um caminho que o leve de volta até às suas origens ou perto destas. Será suficiente vencer a Libertadores para que se crie uma corrente?

Quem diz que no futebol já tudo foi inventado não andará muito longe da verdade. Não há como não encontrar o presente em paralelismos no passado. Talvez o melhor exemplo seja a pirâmide reinvertida não há muito tempo no Manchester City por Pep Guardiola, que recuperou para a modernidade o 2x3x5 da infância do jogo, época em que defender era quase um sortilégio. 

Na fase de ataque, o técnico espanhol organizava os Citizens numa primeira linha de dois centrais e a seguinte com os dois laterais por dentro lado a lado com o 6, uma ideia que entretanto tonificou. Hoje, é mais frequente ver em campo um 3x2x2x3: um dos laterais, o direito, junta-se ao médio defensivo, ao mesmo tempo que o do outro lado, adaptado, alinha com os dois centrais. 

Pep, que assinou a melhor (e, com a anulação completa dos adversários, eventualmente também a mais aborrecida) equipa da história em Barcelona, não só estabeleceu o paradigma que a maioria copia e quer copiar, como, em simultâneo, não deixa de procurar tornar mais efetiva a sua obsessão pelo controlo. É nesse sentido que surge o Guardiola experimentalista, em busca de uma perfeição que todos sabem que não existe, enquanto ao mesmo tempo admitem que se alguém alguma vez chegar perto será definitivamente o espanhol a consegui-lo. 

Pausa, vertigem ou ambas

O futebol dividiu-se nos últimos anos em três filosofias. A da pausa, criada pelo juego de posición (ataque posicional) de Pep; a da vertigem, na verticalização e velocidade de chegada à área sobretudo, mas não só, nas equipas da Red Bull; e uma híbrida, que mistura as duas ideias consoante o que momento e adversário pedem.

Com os anos, também as equipas de posse perceberam que as transições ofensivas velozes não eram heresia e que, por vezes, um passe a mais limitava as probabilidades de golo, e as verticais compreenderam que reter a bola e atacar de uma forma mais cuidada garantia igualmente um melhor posicionamento defensivo para a reação à perda. Ambos os extremos ideológicos procuraram equilibrar-se. Da tese e da antítese nasceu uma vez mais a síntese.

Jurgen Klopp, treinador do Liverpool (Foto: IMAGO)

Manchester e Liverpool

A situação poderá ser vista atualmente nos dois grandes candidatos ao título inglês. Guardiola, que recuperou o falso 9 na Catalunha na pele de Lionel Messi, e depois de já ter tido Kun Agüero e Gabriel Jesus, reconheceu, por fim, a necessidade de, em Inglaterra, evoluir para ter um goleador, um homem de área, no onze habitual. E Haaland acrescentou golos mesmo sem se conseguir encaixar totalmente no ataque posicional. 

O técnico percebeu ainda que ter laterais puros por dentro (Zinchenko, Delph, Cancelo), embora garantissem setores mais próximos uns dos outros, não resolviam um outro problema, o de estancar a transição contrária. É a partir desse dilema que aquele que muito provavelmente será um dia considerado o melhor treinador da história cria uma linha defensiva de quatro centrais: John Stones, à direita, junta-se na construção ao 6, usualmente Rodri, já Aké, face ao poderio físico que ostenta, mantém-se na linha dos outros dois para garantir estabilidade. 

A transformação não acaba aqui. Jérémy Doku é recrutado em nome da capacidade de desequilíbrio no 1x1, tornando o conjunto menos quadrado do ponto de vista da imprevisibilidade. A procura de outro tipo de soluções, não presentes no plano A, servirá como reconhecimento por parte do espanhol que a sua visão foi até aí apenas unidirecional. Afinal, ganha finalmente a Champions com Haaland, um ponta de lança que não se enquadra totalmente no associativismo que professa, e com quatro centrais em campo, quando sempre viu os médios, esses sim, e a qualidade técnica que estes apresentam como fundamentais para os vários momentos do jogo.

Já o Liverpool, que já só tem Salah no portentoso trio ofensivo que já foi formado por Mané e Firmino, não abdica do gegenpressing e dos ataques rápidos. Todavia, Jurgen Klopp viu rapidamente que só isso não chegava perante blocos baixos. Se os três do meio-campo antes apenas serviam de sustentação ao trabalho dos três atacantes e dos dois laterais, fundamentais na chegada para o momento ofensivo, o alemão começou a investir em jogadores com maior capacidade de gestão de bola, uns com mais, outros com menos sucesso: Thiago Alcântara, Arthur Melo e, esta época, Dominik Szoboszlai, Alexis Mac Allister, Wataru Endo e Ryan Gravenberch, aos quais se juntam os jovens aí formados Harvey Elliot e Curtis Jones

A colocação de Alexander-Arnold no meio-campo durante os jogos foi também o reconhecimento do germânico de que, além da capacidade de reter e circular a bola, o seu Liverpool precisava de visão e criatividade na sala de máquinas.

Fernando Diniz, o inventor do 'ataque antiposicional' (Foto: Imago)

Em reinvenção constante

Não há, naturalmente, ideias melhores do que outras, e nenhuma vem com qualquer garantia do sucesso. É aí que entra o contexto: o perfil e a qualidade dos jogadores, as dinâmicas criadas por estes e delineadas pelos treinadores, o treino, a cultura do clube, o nível dos adversários e por aí fora. Tudo conta. O mesmo se passa quando se compara com o passado. O futebol é outro, não há outra forma de dizê-lo.

O aborrecimento provocado pelo Barcelona de Guardiola, ao obrigar à submissão absoluta do adversário, que não conseguia mais do que se cansar a correr atrás da bola, mediatizou, como contraste, o boom austro-germânico da verticalidade que já vinha a florescer entre fronteiras como resposta ao líbero e à marcação individual. Por coincidência, Pep substituiu Jupp Heynckes em Munique e ele próprio foi obrigado a lidar com a sua antítese, ao comando do Bayern, bem cedo na carreira. Aí, adaptou-se a uma cultura de clube bem definida e a jogadores com um perfil bem diferente dos que estava habituado. A experiência terá sido fundamental para a sua própria evolução.

Entretanto, tirando o exemplo da Red Bull e de alguns outros focos espalhados pelo globo, verificou-se uma aproximação generalizada ao ataque posicional, o que fez que, com as nuances já referidas, praticamente todas as equipas joguem mais ou menos da mesma forma. Claro que Guardiola continua a ser o mais extremista no reclamar da bola e em retê-la o mais possível, no entanto todos parecem agora querer controlar o jogo dessa forma. O que torna o mesmo monocórdico.

Henrik Rydström, treinador do Malmo (Foto: IMAGO / Bildbyran)

Ataque... ‘antiposicional’

É em sua oposição, claro, que nos últimos meses têm surgido ideias disruptivas. Uma delas é o ataque antiposicional ou funcional de Fernando Diniz no Fluminense, que chocou de frente com Pep Guardiola na final do Campeonato do Mundo de Clubes (4-0). O resultado acaba por penalizar em demasia o vencedor da Libertadores, que ainda deu bastante trabalho aos ingleses na fase inicial da partida. Não é de todo uma coincidência que seja no Brasil que surja uma ideia que garante mais liberdade aos atletas em campo ao mesmo tempo que lhes confere uma certa organização. Essa é a praticamente a história da luta do futebol canarinho.

Isaac Kiese Thelin festeja título do Malmo, inspirado nas ideias de Fernando Diniz, com os adeptos (Foto: TT/IMAGO)

As ideias de Diniz, que não conseguiu ter no Brasileirão com os cariocas ou ao comando do Brasil na fase de qualificação para o Campeonato do Mundo, resultados tão impressionantes como na prova da CONMEBOL, inspiraram já Henrik Rydström, que levou o Malmo à conquista da liga sueca. E haverá mais a seguir-lhe os passos.

O que é isso de ataque antiposicional? Enquanto as equipas de Guardiola e de todos os que se baseiam nas mesmas ideias ocupam o espaço, colocando-se os jogadores como pedras de xadrez, formando triângulos, até surgir o momento ideal para o passe decisivo, os de Diniz aproximam-se uns dos outros, tendo a bola como referência. Criam superioridades numéricas, fazem tabelas, driblam, relacionam-se de forma a criar o desequilíbrio. Os movimentos são constantes, parecem erráticos, é uma desordem organizada

Que fique claro que o ataque posicional tem movimentações e intercâmbios posicionais, e que o antiposicional também parte de posições pré-definidas. Daí que muitos analistas escolham a palavra funcional. Ou relacionismo.

Não havendo provas científicas, até pela curta amostra, haverá tendência para que o funcional seja mais produtivo em clubes – a química entre jogadores é mais natural com o trabalho diário e, como tal, menos apropriado a seleções – e em competições a eliminar (embora o Malmo o contradiga) e o posicional mais dado a campeonatos, dada a natureza da repetição. Quando mais vezes se treinar mais intuído o modelo é, logo evoluirá com o tempo, aprimorando-se e reduzindo as suas falhas.

Rydström, por sua vez, não é um treinador vulgar. Antigo médio de combate, é leitor de Dostoevsky e ex-crítico musical. Foi capitão do Kalmar e, quando a carreira chegou ao fim, tornou-se treinador da equipa de sempre, inspirando-se nas ideias de Marcelo Bielsa. Um dia, encontrou artigos do treinador e analista escocês Jamie Hamilton sobre uma nova ideia de jogo, o relacionismo, e não olhou para trás. «Vi o Fluminense e inspirei-me. Tirei os jogadores da sua prisão. Tentamos criar o caos, mas há uma estrutura, é importante que os jogadores saibam isso», disse ao The Independent em dezembro. 

Enquanto qualquer um pode tentar ser um Guardiola pela forma como a sua filosofia se expandiu pelo planeta, não há muitos documentos que expliquem, mesmo nos dias de hoje, como provocar o caos através do relacionismo. Os resultados é que ditarão se se tornará ou não tendência, mas há já uma certeza: o jogo continuará a evoluir. Sempre.