«Não enganemos ninguém: os árbitros não são profissionais»

«Não enganemos ninguém: os árbitros não são profissionais»

A BOLA TV09.04.202410:47

Duarte Gomes passou quase metade da sua vida como árbitro, chegando ao topo da pirâmide, ou seja, a internacional. Quando arrumou o apito, manteve-se fiel à ‘arte’ e dedicou-se ao comentário de arbitragem na Comunicação Social. Voz lúcida e respeitada, Duarte Gomes aproveitou a presença no ‘Conselho de Estádio’, de A BOLA TV, não só para apontar as múltiplas insuficiências de que a arbitragem ainda padece, mas também para propor soluções que podem trazer um futuro melhor...

Vítor Serpa (VS) - Nestas últimas semanas têm havido vários problemas em relação à arbitragem, e gostava de regressar ao que aconteceu no Estoril-FC Porto, porque fiquei com a ideia de estar a regressar ao passado. A frio, qual é a leitura que faz dos eventos?

DUARTE GOMES - A arbitragem sempre esteve na boca do lobo, e quando não se fala dela é bom sinal. Hoje, com um impiedoso escrutínio televisivo, vemos tudo, eventualmente até mais e melhor do que o próprio VAR. Ora, esse escrutínio tem o condão de acicatar as pessoas com ânimos mais exaltados, e na reta final do campeonato, as emoções podem toldar as mentes e fazê-las incorrer alguns em alguns excessos. O que aconteceu no Estoril-FC Porto foi um exemplo claro do que não queremos ver repetido no futebol português. Andei lá dentro, sei que ser treinador de futebol é mesmo muito difícil e respeito e compreendo essa pressão, assim como percebo o empenho dos jogadores, que tentam manter o seu lugar na equipa, ou querem renovar ou ter uma boa transferência, havendo muito mais em jogo do que o próprio jogo. Mas há uma linha, inultrapassável, que passa por um comportamento ético, e no Estoril, a partir de dado momento, houve algum descontrolo emocional, que levou a cenas absolutamente lamentáveis, e sem qualquer justificação.

JOSÉ MANUEL DELGADO (JMD) - Mas onde é que o árbitro fica no meio disso tudo? O que é que faz um árbitro internacional estar a ver, e bloquear? Pareceu, a página tantas, um observador passivo do caos que se gerava à volta dele…

- Sou admirador das qualidades técnicas do António Nobre, conheço a pessoa, a seriedade do homem, e a sua competência. É um dos valores mais promissores da nossa arbitragem. Mas naquele jogo falhou redondamente e, pela falta de pulso, foi um dos grandes responsáveis do que aconteceu. Houve um lance determinante, e que não teve a ver com a interpretação de penáltis ou de situações disciplinares, mas sim com a autoridade do árbitro, que não pode ser posta em causa de forma tão direta, tão direcionada e tão repetida, como na reclamação de Francisco Conceição. A partir do momento em que António Nobre decidiu exibir o cartão amarelo, e não o vermelho, como estava obrigado, perdeu o controlo do jogo e dos jogadores. A mensagem que lhes passou foi a de que a partir daquele momento podiam insultar, que nada lhes acontecia. E insultaram, bateram-lhe palmas na cara, e no final do jogo até empurraram os assistentes, e não lhes aconteceu nada.

JMD - Nós vivemos o jogo dentro do campo, em posições diferentes, e sabemos que os jogadores vão sempre testando o árbitro até perceberem onde podem chegar….

- Obviamente. Vão até onde o árbitro deixar. Imagine este jogo acontecer, por exemplo, com Pedro Proença, Vítor Pereira ou com Olegário Benquerença. Impensável! Independentemente de falhas técnicas ou disciplinares, a sua autoridade, nunca seria posta em causa. E a maior responsabilidade, repito, foi do árbitro, que perdeu o controlo do jogo.

JMD - Parece-lhe que a culpa do que aconteceu foi de André Villas -Boas?

- Percebi o intuito da pergunta, mas, como é óbvio, a culpa não foi do André Villas-Boas...

VS - Nestas circunstâncias, o que é que deve fazer, já não digo o órgão de classe, a APAF, mas sobretudo o Conselho de Arbitragem? Deve comunicar com os adeptos sobre o que aconteceu ou permanecer em silêncio, à espera que o tempo ponha uma pedra no assunto e as pessoas se esqueçam daquilo que aconteceu?

- Estar no Conselho de Arbitragem é uma das funções mais difíceis no futebol, porque se trata de um setor sensível, muito exposto, e em que muitas vezes dizer alguma coisa pode ser contraproducente, e não dizer nada pode ser pior ainda. Estamos perante um equilíbrio difícil. No entanto, visto de fora, numa posição mais fácil, creio que há momentos em que é justificada uma intervenção. Ainda que não seja em cima de um evento que está muito quente, dando algum tempo, se o jogo foi demasiado polémico, ou se houve lances suscetíveis de causar contestação durante semanas, por que não um esclarecimento, nem que seja para reconhecer que houve erro do árbitro? Acho também que o trabalho mais importante deve ser feito internamente: perceber o porquê do árbitro ter errado, porque vacilou, e o que pode ser feito para não voltar a acontecer.

VS - Há uma questão de que vale a pena falar. No Benfica-Sporting da Taça de Portugal, houve uma situação que gerou dúvida, entre Coates e Rafa. O árbitro estava em cima do lance, não assinalou nada, mas dada a dificuldade da avaliação, não deveria ter tido o conforto do VAR?

- Na prática, devia. Na teoria, não pode. E este é que é o problema. O protocolo que baliza a intervenção do VAR tem que evoluir para um patamar mais próximo da realidade do jogo. Esse foi um daqueles lances muito bons para explicar tecnicamente: se um jogador vai em corrida e projeta a perna para o adversário, que nada faz, o culpado do contacto é o jogador atacante. Foi o que aconteceu na grande penalidade que Di María cavou no jogo com o Desportivo de Chaves. Muito diferente, tecnicamente, e os árbitros têm obrigação de sabê-lo, é um defesa esticar a perna na direção da corrida do adversário, e este tropeçar. Mesmo que seja o atacante a iniciar o contacto, este só sucede porque o defesa arriscou e colocou a perna na sua trajetória. Foi isso que aconteceu entre o Coates e o Rafa, num lance que, tecnicamente, é indiscutivelmente faltoso, porque houve uma ação do defesa a promover o desequilíbrio.

JMD - E quanto ao trabalho de Artur Soares Dias no dérbi do último sábado, para a Liga?

- Não me parece profícuo entrarmos sistematicamente na análise de casos concretos, porque só contribuem para o ruído e não para o esclarecimento. Arbitrar jogos é extremamente difícil. O antes e o depois também o são. Os árbitros têm de ter noção da enorme responsabilidade inerente à sua função. Têm de continuar a trabalhar muito, para fazer mais e melhor.

JMD - O Conselho de Arbitragem devia vir a público dar explicações técnicas?

- Se eu fosse Conselho de Arbitragem, sim, mesmo que as pessoas não compreendessem. Haveria uma grande diferença entre o silêncio e a vontade de explicar. O Conselho de Arbitragem não seria acusado, pelo menos, de não tentar cumprir o seu papel pedagógico.

A IMPORTÂNCIA DO VAR

VS - Os adeptos em geral já interiorizaram a importância que tem o VAR?

- Sem dúvida. O VAR é uma espécie de paraquedas. Emboras não queiras utilizá-lo, sabes que se estiveres em queda podes recorrer a ele. O problema é que ainda está limitado por um protocolo restritivo, e não podes abri-lo sempre, só de vez em quando, em algumas situações. Relativamente aos anos em que fui árbitro, havia, da parte da perceção pública, e também de dirigentes desportivos, jogadores, técnicos, e imprensa, uma intolerância muito grande em relação ao erro do árbitro. Havia aquela ideia de que aquilo que o adepto via em casa, no sofá, o árbitro também tinha que ver, em campo. Agora, com o VAR, já se consegue perceber que o árbitro não teve culpa, e que o VAR é que devia ter feito isto ou aquilo. Ou seja, já se percebeu a dificuldade do papel de quem está no campo, e essa é uma pequena vitória. Ao mesmo tempo passou a haver uma maior intolerância ao erro, o que é compreensível. Se há uma ferramenta que fornece provas em muitas situações, a nossa exigência passa a ser muito maior.

JMD - É curioso porque a importância do VAR percebe-se, sobretudo, naqueles jogos em que não há VAR. Parece que estamos a andar no arame sem rede. Mas deve haver uma carreira de VAR? E num contexto de profissionalização da arbitragem, esta deve ir até à idade legal da reforma?

- Essa questão leva-nos para outra, que tem a ver com uma profunda remodelação de que a arbitragem necessita. Primeira questão, e vamos ser muito sinceros, os árbitros hoje não são profissionais. E não enganemos ninguém em relação a isto. Há alguns árbitros que têm um valor fixo mensal para exercer a sua profissão, independentemente do número de jogos que fazem, e que é um valor diferenciado em função do estatuto e da competência.

JMD - Mas os árbitros que têm essa remuneração, têm outro emprego? Ou são precários?

- Podem ter, desde que consigam priorizar a arbitragem. E é por isso que não são profissionais. Podem ter um negócio, ser profissionais liberais, meterem uma licença sem vencimento, desde que façam a gestão para privilegiar a arbitragem, sempre que a arbitragem solicitar. Como é a disponibilidade para a função que é paga, isto não é profissionalismo. O profissionalismo não se resume a um pagamento mensal, tem de estar associado a uma carreira.

VS - Não há estatuto de carreira?

- Não existe. O que acontece aos árbitros, hoje, quando são despromovidos? Ou quando se reformam? Eu acabei a carreira, por opção, mais cedo do que o habitual, e passei de uma remuneração por jogo, para zero na semana seguinte. Sem nenhuma almofada. E isto nunca foi pensado.

JMD - A especialização do VAR parece elementar…

- O caminho passa obrigatoriamente por criarmos uma carreira estritamente profissional. Aliás, na arbitragem devem ser todos profissionais, e não apenas o presidente do Conselho de Arbitragem. E digo até mais: até aos presidentes dos Conselhos de Arbitragem regionais deviam ser profissionais, para que haja um trabalho feito de forma consolidada, regular e planeada, que apresente frutos a médio e longo prazo.

VS - O futebol tem dinheiro suficiente para poder criar essa estrutura?

- O futebol tem que saber o que quer. Se quer uma arbitragem com qualidade, em vez de 5 mil árbitros deve ter 10 mil, que vão fazer muito menos jogos ao fim de semana, e que vão permitir a quantidade de onde será escolhida a qualidade. É resposta a esta questão que o futebol tem de dar.

QUEM QUER SER ÁRBITRO?

JMD - Como é que se convence um jovem a ir para árbitro, sabendo-se que não é, propriamente, a mais confortável das atividades, mesmo do ponto de vista social. Um árbitro que está mal ao domingo, se calhar à segunda-feira não sai de casa, e ainda se sujeita a viver em estado de precariedade…

- É uma luta muito difícil porque, de facto, a função de árbitro está associada a uma ideia de desmancha-prazeres, de corrupto, de ladrão, e até a uma imagem de insegurança, que muitas vezes faz com que os jovens não se sintam confortáveis. Se queremos criar um plano de recrutamento, que tem de ser transversal, nacional, pensado, ponderado e bem investido, temos de seduzir os jovens com vários argumentos: primeiro, que vai ter acompanhamento constante nos seus jogos, para não se sentir sozinho e inseguro; depois que terá acompanhamento técnico na preparação; assegurar que não vai ter de comprar os seus equipamentos, o apito e os cartões, como ainda hoje sucede; e que não vai arbitrar seis jogos por fim de semana (situação atual), e que vai ter tempo para a família, para estudar e para ele próprio. E há a questão da perspetiva de carreira. Cada vez mais temos de convencer os jovens de que a arbitragem pode, tal como acontece com os jogadores, ser uma carreira muito profícua.

VS - Seria interessante aproveitar a escola para tentar ali encontrar uma área de formação inicial para a arbitragem?

- As escolas e os clubes são fundamentais.

VS - Isso não funciona ainda?

- Funciona de alguma forma, e devo tirar o chapéu a algumas associações e aos respetivos conselheiros de arbitragem, que de forma quase avulsa e por sua própria iniciativa andam a bater de porta em porta nas escolas, com protocolos, nos clubes, e até mesmo nas autarquias, para tentarem angariar novos árbitros.

VS - É aí que estão os candidatos mais óbvios?

- Estão nas escolas, e vamos falar aqui do 9.º e 10.º anos, dos 14, 15, 16 anos.

JMD - Mas não é essencial que tenham jogado futebol, para não aparecerem alguns árbitros de aviário, como manifestamente temos?

- Terem jogado futebol é importante, porque, taticamente, dar-lhe-á uma maturidade muito maior. O problema é que, perante a falta de recursos, temos de aproveitar aqueles que, mesmo não tendo jogado, queiram seguir a carreira de arbitragem, e tentar formatá-los.

JMD - E a sensibilidade para perceber o jogo?

- É importante integrar um conjunto de módulos na formação, que ainda hoje não existem. Por exemplo, os árbitros têm um curso com uma formação teórica das leis do jogo, e uma formação prática de algumas situações. E é assim que são aprovados e preparados para ir para o campo. Porém, não têm um treinador a falar com eles sobre o que é a tática do jogo. Não têm um nutricionista que os elucide sobre a preparação do pré-jogo, o que é que devem comer na véspera, como é que devem descansar. Não têm a orientação de um psicólogo para lhes dizer, «atenção, no final do jogo pode acontecer isto e isto». Está tudo errado e é preciso reformular completamente o nível de ensino que damos a esses jovens e apetrechá-los com ferramentas, para se tornarem melhores árbitros.

JMD - Insisto na necessidade de um árbitro perceber o jogo…

- É preciso ir aos clubes, nomeadamente aos escalões de juniores, onde aí sim, os jovens já têm uma formação prática de alguns anos de futebol, e dizer-lhes que só um ou dois por cento é que vão ter uma carreira profissional e que a arbitragem pode ser uma alternativa válida para continuarem ligados ao futebol.

JMD - Isso é uma coisa que acontece recorrentemente no râguebi…

- Houve iniciativas recentes do Conselho de Arbitragem, inclusive uma delas a reboque de uma ação global da UEFA, de tentativa de recrutamento de árbitros, que funcionou muitíssimo bem em número, mas na prática não teve os mesmos resultados. Também o próprio Sindicato dos Jogadores teve abordagens de sensibilização e tenho conhecimento pelo menos de um jogador que se tornou árbitro depois de acabar a carreira. Mas continuam a ser momentos efémeros e tentativas voláteis. É preciso haver um plano transversal, que implique investimento.

VS - Hoje em dia sabe-se quantos professores faltam na sociedade portuguesa, ou quantos médicos faltam. Há uma ideia de quantos árbitros faltam no futebol português?

- Não serão contas difíceis de fazer. Bastará somar o número de jogos que se disputam por fim de semana, em todos os escalões, e em todas as variantes e géneros, que são dezenas de milhares, para menos de 5 mil árbitros no ativo. Para dar uma ideia, temos menos árbitros do que em 1997 ou 1998, o que é inadmissível. Como é que o futebol evoluiu tanto, em 30 anos, e nós na arbitragem regredimos em quantidade? Como é que não conseguimos encontrar formas sérias e ponderadas de garantir não só que temos mais árbitros, mas ainda que não abandonam a atividade no primeiro ou no segundo ano?

JMD - A censurabilidade social estará associada a esse decréscimo do número de árbitros e de candidatos a árbitros?

- Sim, da mesma forma que está a perceção de insegurança. A partir do momento, em 2012, em que foi decidido deixar de haver policiamento obrigatório nos estádios, houve um aumento real, comprovado, estatístico, de agressões e invasões de campo, visando os árbitros, algo que se estendeu tambéma jogadores e treinadores. Antes, sem querer ser saudosista, a verdade é que bastava uma farda da autoridade (agora são precisos dois), que me tranquilizava e sem a qual eu não começava o jogo. Tinha, pelo menos, um efeito dissuasor face aos 50 adeptos que se mostravam um pouco mais exaltados e propensos a invadir o campo ou a dizer alguma coisa. A farda tinha um efeito que diluía o mau comportamento, e era preventiva. Quando essa presença deixou de ser obrigatória, verificou-se uma relação direta com o aumento da violência.

VS - Uma das questões que vale a pena levantar tem a ver com a igualdade de género. Não lhe parece que na arbitragem em Portugal está a ser demasiado lento o aparecimento do árbitro no feminino?

- Teria de responder sim, até há três ou quatro anos. Neste momento, felizmente, os números estão a subir bastante. E é um prazer ver curso de árbitras, até de segunda categoria, e não apenas de primeira, quando antes nós tínhamos meia dúzia delas, no meu tempo de árbitro, por exemplo.

JMD - Em 1982, por aí, cheguei a ser arbitrado em jogos da Associação de Futebol de Lisboa por uma árbitra…

- Que era a única que havia, na altura.

JMD - Os jogadores, perante uma árbitra, eram, digamos, mais contidos.

- Mas agora já não são, é um problema que existe e tem de ser normalizado. E há adeptos que usam requintes de malvadez, sexistas, extremamente deselegantes, que têm de ser banidos. Infelizmente é questão cultural.

VS - Então, perante esse incremento, o que falta?

- Falta termos árbitras na primeira categoria nacional, a poder dirigir jogos de homens, na primeira Liga nacional. É um passo inevitável, que já foi dado em diversos países, mas que deve estar assente na competência e na meritocracia.

JMD - Então, não defende um sistema de quotas?

- As quotas podem fazer algum sentido perante a dimensão geográfica das associações, e da oportunidade que se deve dar nos concelhos do interior. Mas tem de estar muito bem equilibrado com a meritocracia. Não podemos ter árbitras ou árbitros a dirigir jogos, se não têm competência. Queremos os melhores no topo.

UM NOVO ORGANISMO

JMD - Tem-se falado numa grande remodelação da arbitragem, e da constituição de um novo organismo, autónomo, para dirigir o setor, à imagem do que acontece em Inglaterra, na Alemanha ou nos Estados Unidos, e que traria a arbitragem para um novo patamar. Qual a sua opinião sobre esta possibilidade?

- Defendo-a, porque conheço a PGMOL, que faz essa gestão em Inglaterra. Para que possa fazer-se uma ideia do nosso nível de atraso, a PGMOL já existe desde 2002 na Premier League, que é só o melhor futebol do mundo. E não custa nada copiar os bons exemplos quando eles são uma referência importante. Não é plágio, é inteligência.

JMD - Indo mais concretamente ao caso português…

- Fico feliz que a FPF tenha tido, recentemente, essa iniciativa, embora ainda esteja tudo um pouco no ar, até pelo facto de haver um processo eleitoral que decorrerá, em limite, até fevereiro de 2025. Trata-se de uma ideia que faz todo o sentido, apesar de, neste momento, a estrutura do Conselho de Arbitragem, por imposição legal, ter uma secção específica para o futebol profissional, que, se trabalhar muitíssimo bem, terá todas as condições para fazer a gestão quase da mesma forma.

VS - Qual é a grande vantagem que esta entidade externa traria?

- Daria uma sensação de credibilidade, até pelo afastamento físico da própria FPF, ao mesmo tempo que traria pessoas totalmente afetas de forma profissional, em full-time, à missão, capazes de fazer a ligação com quem está imediatamente abaixo, de forma a saberem quem tem potencial para ascender. Isso também acontece na PGMOL, onde acompanham os árbitros em formação, dos distritais, e dos nacionais, para perceberem onde está o talento para o médio e longo prazo. Portanto, a favor sim, embora entenda que se a secção profissional funcionasse em pleno, poderia, praticamente, fazer a mesma coisa.

JMD - Mas, mesmo um novo organismo, não seria alvo da clubite, mal se soubesse quem iria liderá-lo e geri-lo?

- Obviamente. Tal como são os presidentes dos Conselhos de Arbitragem quando são eleitos. É imediatamente perguntado por que é que chegou ali, quem é que lá o colocou, se fez ou não favores para lá estar. Mas devemos estar preparados porque nunca nos vamos conseguir livrar d o ruído exterior. O que há que fazer é trabalhar, mostrar serviço, e alterar pelo menos um paradigma: parece-me evidente, que é preciso comunicar mais com as pessoas, ser mais transparente nos processos, por exemplo, no processo classificativo, ou no processo das nomeações. É claro que nunca será possível agradar a todas as pessoas todas, mas pelo menos não seremos acusados de permanecer numa bolha de silêncio.

VS - Apesar da evolução dos tempos, dá a sensação de que hoje, ao adepto do futebol, é dada cada vez menos informação sobre o que se passa na arbitragem. Antigamente havia um ranking de árbitros e sabia-se quem ia à frente, e as notas eram conhecidas, o que levava a um escrutínio grande sobre o observador…

- Pode haver uma sensação de opacidade, que tenho a certeza que não é deliberada por parte de quem está na estrutura, sendo, isso sim, uma opção estratégica, mas a perceção que existe não é benéfica nem para a classe, nem para a sua imagem. Há um processo que deveria ser mais transparente, até para os próprios árbitros, que é o da classificação. E não me chocava, por exemplo, uma divulgação semanal ou mensal das notas das arbitragens, para haver uma classificação, à imagem do que acontece num campeonato em que sabemos quem está em primeiro e em segundo. Depois, as pessoas poderão, ou não, concordar, mas nunca irão pôr em causa o conjunto das métricas e dos padrões classificativos.

JMD - De qualquer forma, quem dá nota aos árbitros e tem um papel importante em tudo isto passa por entre os pingos da chuva da opinião pública. Não seria benéfico que se soubesse quem são, quais as suas qualificações, e por que razão, em determinados jogos, deram uma certa nota ao árbitro? Seria útil, até do ponto de vista pedagógico…

- Por vezes há a tentação de diabolizar o observador, quando são ex-árbitros, que seguiram um trajeto normal, decorrente do final de carreira. São pessoas de bem, sérias, mas a forma como está parametrizada a sua função é errada. Digo até mais: no futebol moderno, que está extremamente virado para o processo de decisão, há três situações - penáltis, cartões vermelhos e golos - que resolvem jogos, e cuja avaliação pode ser feita de casa. O que os observadores fazem é estar no campo, mal pagos, para depois avaliarem, num portátil, alguns lances. É preciso reformular tudo isto. Defendo a figura presencial de um observador apenas para efeitos formativos. Quando acaba o jogo vai ao balneário, especialmente quando os árbitros são mais inexperientes, e diz-lhes, «estiveste mal aqui, sabes porquê? Porque estavas mal colocado e não olhaste para o teu assistente», ou «estavas de costas para a bola e relacionaste-te mal com o jogador», ou ainda «falhaste o penalti porque deixaste-te surpreender na tua colocação.» Deve ser o mentor.

VS - Mas isso acontece com algum observador hoje em dia?

- Não, 99% do trabalho do observador é avaliar. Ora, se é para avaliar lances decisivos, pode fazê-lo remotamente. Aliás, tanto é que depois de o fazer, há uma comissão técnica que vai rever os lances, e pode desacreditar o próprio observador.

VS - Habituámo-nos, durante muitos anos, a dar mérito à capacidade de muitos árbitros portugueses, que foram reconhecidos internacionalmente. E essa era uma forma fundamental da divulgação da qualidade do futebol português. Hoje em dia, isso não acontece tanto, do ponto de vista da avaliação da UEFA e da FIFA. Deve-se, basicamente, a quê?

- Deve-se à falta de crença das instâncias internacionais na qualidade e competência dos nossos árbitros.

VS - Há falta de influência?

- O presidente do Conselho de Arbitragem está ligado ao Comité de Arbitragem da UEFA, mesmo que esse seja um órgão muito político, à imagem do Conselho de Arbitragem, em Portugal. Mas prefiro ver o lado técnico da questão, que se resolve dando mais qualidade aos nossos árbitros, mais competências e mais preparação para terem melhores performances. Mais do que investir no lobbying, é importante investir na qualidade, e devemos refletir como é que, por exemplo, houve árbitros que chegaram ao estatuto de internacional com dois ou três jogos na primeira Divisão.

A PRESIDÊNCIA DA ARBITRAGEM

JMD - Tem, na sua agenda, um dia vir a presidir o Conselho de Arbitragem da FPF?

- Vou dar-lhe uma resposta clichê: nunca vou dizer não à arbitragem, a menos que aquilo que me seja pedido for algo que não consiga digerir emocionalmente e, acima de tudo, estruturalmente. É meu entendimento que o Conselho de Arbitragem, como está formatado, de acordo com os regulamentos, é um órgão demasiado político. Tem por obrigação fazer regulamentos, nomeações, classificações, contatos diretos, diários, com as Associações Distritais, preparar cursos e formar árbitros, não só dos árbitros de topo, mas de centenas de árbitros e árbitras, para o futebol, o futebol feminino, o futebol de praia e o futsal, além de gerir os observadores, os árbitros assistentes, os técnicos de arbitragem, os preparadores físicos e os nutricionistas. Não me vejo com um perfil tão burocratizado. A arbitragem deve caminhar, a curto, médio prazo, para uma fórmula de duas vias, uma que contemple um poder mais político, e outra de decisores executivos e técnicos. O presidente do Conselho de Arbitragem não pode ser, simultaneamente, político e técnico. A função, tal como está neste momento, não me seduz.

JMD - Foi possível a um ex-árbitro, Pedro Proença, ser presidente da Liga, sendo reeleito de forma consensual. Muito se tem falado na possibilidade dele vir a ser candidato à Federação Portuguesa de Futebol. Acredita, já que o conhece tão bem, que tem condições para isso?

- Conheço-o bem, pessoalmente e, por força da nossa amizade, que leva mais de 30 anos, temos o cuidado de não entrarmos em áreas que podem beliscar as ideias que temos em relação ao futebol. Agora, conheço a forma de trabalhar do Pedro, e tenho de dizer, abertamente, que não conheço de outras pessoas que me mereçam maior respeito. Se Proença avançar para a presidência da FPF, terá o meu apoio pessoal, porque tem todas as condições para fazer bem o seu trabalho. Independentemente daquilo que possamos criticar ao nível do futebol profissional, A Liga, enquanto empresa, foi muitíssimo bem recuperada e revitalizada, vinda de uma situação de pré falência. Esse mérito é todo de uma pessoa que, além de um percurso brilhante como um árbitro - e não esqueçamos que foi o número um do mundo - neste momento está no Comité Executivo da UEFA, que é um cargo importantíssimo, por inerência de ser presidente das Ligas Europeias de futebol. Conheço as suas ideias para a arbitragem, aliás sempre as conheci, porque sempre falámos delas, e creio que tem todas as condições para avançar.

VS - Não deveria haver um projeto de integração do futebol no seu conjunto?

- Não sou nada fundamentalista. Deve manter-se aquilo que vier a provar-se a ser melhor. Não acho que o futebol deva interferir na arbitragem, no que diz respeito a nomeações e classificações, porque há sempre uma via de influência nefasta, que deve ser muito bem balizada. A arbitragem deve gerir o seu próprio destino.

JMD - É preciso ter uma blindagem muito forte para comentar arbitragem todas as semanas?

- É, e deixe-me dizer-lhe que recebo agora mais mensagens ofensivas do que recebia quando era árbitro, atividade que deixei em 2016 Sei que estou exposto nas redes sociais através do projeto Kickoff, logo, de alguma forma, ponho-me a jeito. Mas mesmo dando de barato o ruído exterior do adepto que não se controla, também ao nível das pessoas com mais responsabilidade, há tentativas subtis de pressão, coação e condicionamento que entendo como elogio ao meu trabalho. O meu rumo está traçado.