Red Star de Jules Rimet de volta: a luta continua, camaradas
«Resistir até ao fim», uma das palavras de ordem vistas nas bancadas do Stade Bauer, o estádio do Red Star FC (Foto: IMAGO / PanoramiC)

Red Star de Jules Rimet de volta: a luta continua, camaradas

INTERNACIONAL25.04.202410:00

Histórico emblema fundado por Jules Rimet vai regressar ao futebol profissional, através da Ligue 2; origens no proletariado e antifascista; possui um dos estádios mais ruidosos de França

O Red Star FC, o clube mais antifascista francês e o quarto emblema mais antigo do país, atrás de Standard Athletic Club, Le Havre e Bordéus, está de volta ao futebol profissional depois de no fim de semana ter garantido a promoção à Ligue 2 ao fim de cinco temporadas. Parece curto o tempo de espera, mas de 2003 a 2005, chegou a participar no sexto escalão e há 26 anos que não joga na Ligue 2 no seu Stade Bauer, atingido primeiro, em 1999, por uma terrível tempestade, não homologado depois por questões de segurança e finalmente remodelado antes do início da presente temporada.

Há dois anos, o clube que nos primórdios jogava nos Champs de Mars, mesmo ao lado do Torre Eiffel, foi comprado pelo consórcio norte-americano 777 partners, que também detém participações nos italianos do Génova, nos belgas do Standard Liège e nos brasileiros do Vasco da Gama, e parece estar a dar passos definitivos para escrever uma nova página na história, a de um ansiado regresso à primeira divisão. Longe vão os tempos do movimento popular que trazia para as imediações do mais imponente símbolo da Expo de 1900 os operários que procuravam descomprimir das intermináveis horas de trabalho da época.

É para aí que aponta o técnico Habib Beye, antigo defesa do Marselha e internacional senegalês — integrou a seleção que bateu a França no Mundial 2002 —, que tem o seu contrato a poucas semanas do término, mas aspira já a um feito ainda maior nos próximos meses: «Farei uma reflexão em conjunto com o presidente, porém vou ser já muito claro, porque quero uma equipa para subir à Ligue 1. Pode ser um pouco ambicioso, mas se amanhã for um treinador da Ligue 2 a minha ambição será sempre subir à Ligue 1.» Se ficar. Porque Lens ou Stade Reims podem também perder os respetivos técnicos e estão atentos.

O primeiro amor de Jules Rimet

Mas que clube é este Red Star? E porque tem um nome anglófono quando nasceu no coração da cidade-luz? Vamos lá.

Em 1970, o Mundial do México deixa em definitivo a Taça Jules Ri­met ao Brasil de Pelé, Jairzinho, Gerson, Tostão, Rivelino e Carlos Alberto, pela conquista do terceiro Campeonato do Mundo por parte dos canarinhos. Rimet, advogado, terceiro presidente da FIFA e mentor do torneio, é homenageado com a atribuição do seu nome ao primeiro troféu entregue pelo organismo aos vencedo­res, na sequência de uma decisão durante o congres­so do Luxemburgo, em 1946. No entanto, a competição continental não é o único amor do gaulês. Há outro, também ligado ao futebol: o Red Star.

Comunhão perfeita entre jogadores e adeptos no Rouen (Foto: IMAGO / PanoramiC)

É em Saint-Ouen, comuna da cidade de Saint-Denis, norte da Grande Paris, que funda, em 1897, o Red Star Club Français, aproveitando a ideia da governanta, Miss Jenny, inspirada numa companhia marítima da altura, a Red Star Line, para a sugestão. O clube respira desde sempre ideais de esquerda, embora a escolha de uma estrela vermelha para o símbolo, comum também no bolchevismo de Lenine, seja, ao que tudo indica, apenas coincidência.

A inclinação política não é alheia ao que o rodeia. Um empreendimento imobiliário na periferia do estádio que contempla a construção de um velódromo para a prática de ciclismo provoca o fim do primeiro Red Star e o levantamento definitivo dos seus adeptos contra o capitalismo, que queria fazer de Paris uma cidade para ricos e não para operários.

Prédio junto ao Stade Bauer durante o jogo entre o Red Star e o Lyon na Taça de França (Foto: Julie Sebadelha/ABACAPRESS.COM/IMAGO)

Símbolo de La Resistance

O Stade Bauer — que recebe o nome de Jean-Claude Bauer, médico francês executado durante a Segunda Grande Guerra, e é usado como esconderijo para armas durante o confronto armado com os nazis —, casa do Red Star, e o Stade de France, palco usado pelos Bleus para os jogos mais importantes, estão a poucos minutos de automóvel. Uma das bancadas é batizada com o nome Della Negra, em memória do avançado italiano Rino Della Negra, tam­bém executado pelos alemães. Como curiosidade, é ainda neste palco que a seleção brasileira defronta Andorra, em partida de preparação para o Campeonato do Mundo de 1998, e antes e durante os Jogos Olímpicos de Paris vários atletas se poderão preparar.

O bairro de Saint-Ouen é conhecido por ter uma grande comunidade de imigrantes e o Red Star procura, desde cedo, criar uma forte ligação à população, ultrapassando as fronteiras de um simples clube de futebol. A integração das crianças do bairro na sua organização e na própria formação, e a criação de uma equipa principal multicultural são preocupação constante dos dirigentes ao longo da história.

No que diz respeito ao sucesso des­portivo, há a registar cinco Taças de França, quatro delas ainda na era do futebol amador, na década de 20, e a outra durante a Segun­da Guerra, em 1941/42. Não está no primeiro escalão desde 1975. Começou por ser Red Star Club Français de 1897 a 1904, Red Star Amical Club de 1904 a 1925 (após fusão com o Amical Football Club), Red Star Olympique de 1925 a 1944 (fusão com o Olympique de Paris), Red Star Olympique Audonien de 1944 a 1946, Stade Français-Red Star de 1946 a 1948 (fusão temporária com o Stade Français), Red Star Olympique Audonien de 1948 a 1955, Red Star Football-Club de 1955 a 1966 (fusão com o Toulouse Football Club), AS Red Star de 1976 a 1982, AS Red Star 93 de 1982 a 2001, Red Star FC 93 de 2001 a 2010 e Red Star FC de 2010 até hoje.

Paris Saint-Germain é o único clube reconhecido como parisiense pela cidade (Foto: IMAGO / ABACAPRESS)

Desterrado de Paris

Apesar de algum antagonismo em relação ao Paris Saint­-Germain devido à sua tradição capitalista, é alimentada uma maior rivalidade com o Paris FC, que há alguns anos persegue a subida à Ligue 1. Além de uma visão mais mercantilista do jogo, reforçada com o investimento recebido por parte do reino do Bahrain a partir de 2020, o PFC tem nas bancadas elevada concentração de adeptos de extrema-direita e de ideias racistas, o que o coloca no extremo oposto ao do Red Star.

Há um divórcio quase eterno entre a cidade e o clube. Paris não reconhece o Red Star como emblema da capital, apesar de na Ligue 1 contar apenas com o PSG, fundado… em 1970, e obriga-o a mudar-se para o Saint-Ouen, onde a Mairie tem tomado decisões controversas. Se há muitos anos o levantamento do Velódromo foi prejudicial, o município ainda recentemente autorizou a construção de um bloco de apartamentos colado ao estádio, justamente quando o emblema planeava a remodelação, adiando-a. A justificação usada foi que os vizinhos não são adeptos e teriam de lidar ainda mais com as luzes e as fervorosas bancadas do Bauer. Por outro lado, Paris FC teve direito de graça ao Stade Charléty, que nunca atinge a lotação máxima.

O PSG ficou então com o estatuto de único clube de Paris, apesar da natural injustiça que tal trazia para o Racing Club, atualmente no quarto escalão, e para o Red Star, cuja conotação com os ideais comunistas e antifascistas lhe davam o rótulo de «problemático».

Uma outra vez, a liga francesa e a Mairie impediram que o Red Star pudesse jogar na Ligue 2 no Bauer por «questões de segurança», obrigando-o a mudar-se para o Jean-Boulin, ao lado do Parque dos Príncipes, onde joga a equipa feminina do PSG, ou em Beauvais, ao lado do aeroporto. Situações que levaram o clube a avançar em definitivo para as obras no estádio.

De Lemerre a Garrincha

O Red Star tem em Roger Lemerre um dos treinadores mais fa­mosos, precisamente no início da carreira, de 1975 a 1978, bem an­tes da conquista do Euro-2000 e da Taça das Confederações do ano seguinte ao serviço dos Bleus. Jogadores como Helenio Herrera, Guillermo Stábile, Bror Mellberg, Safet Susic ou mais re­centemente Steve Marlet e David Bellion também vestiram a camisola verde e vermelha do emblema parisiense.

Até Mané Garrincha terá feito um jogo pelo emblema fran­cês. «A companheira dele cantava e veio fazer uma digressão por Paris. Nessa altura procurava um clube para treinar e dissemos que sim. Já estava quase na casa dos 40, mas era o Garrincha. Fez um jogo connosco, contudo no dia seguinte lemos algumas palavras suas no L’Équipe: ‘São muito simpáticos, mas entrego-lhes a bola redonda e eles devolvem-na quadrada!’ Como devem compreen­der, a equipa já não o recebeu tão bem no dia seguinte e nunca mais o vimos», conta na época o lateral Guy Garrigues ao Le Parisien. Garrincha tinha 36 anos.

Novos tempos

Construído no longínquo ano de 1909, o Stade Bauer, de inspiração britânica, com os adeptos próximos do relvado, alberga 10 mil espectadores e tem passado por várias etapas de remodelação.

Equipamento do Red Star em 2022/23 (Foto: Red Star FC)

Um espaço com lojas, um shopping e uma escola comercial, onde se podem formar jovens que, em teoria, não conseguirão chegar à primeira equipa, fazem parte do entorno da infraestrutura, mesmo que a modernização e a criação de tais espaços sugiram a capitulação perante o capitalismo e não tenha agradado a todos. O mesmo aconteceu com a mediatização anual dos novos equipamentos, que se tornam sempre um evento de grande interesse nas redes sociais. Sempre únicos e fantásticos, as imagens rapidamente se espalham pela internet e se tornam virais.

As bancadas, contudo, mantiveram-se fieis, mesmo quando a equipa andava por escalões inferiores. O bar l’Olympic, mesmo à frente da entrada no Bauer, é ponto de encontro para todos os adeptos, de várias nacionalidades, debaterem o clube. Não faltam espanhóis, membros dos Bukaneros, a mais famosa claque do Rayo Vallecano, ou alemães, adeptos de Sankt Pauli, também emblemas especiais, inclusivos e de esquerda, assentes no proletariado das respetivas cidades.

O Bauer vai voltar, nos próximos meses, a vestir-se de gala. Os apaixonados ultras Red Star Fans, a Gang Green e os Perry Boys irão fazer o apoio disparar em decibéis, o verde e o vermelho vão estampar ainda mais as bancadas que gritarão palavras de ordem e de resiliência, em nome da causa. Se já era um vulcão antes, agora na Ligue 2 promete mesmo entrar em erupção. A luta continua, camaradas!