«O meu padrasto proibiu-me de jogar futebol porque viu duas raparigas a beijarem-se»
Jéssica Silva.

ENTREVISTA - DIA DA MULHER «O meu padrasto proibiu-me de jogar futebol porque viu duas raparigas a beijarem-se»

FUTEBOL FEMININO08.03.202408:30

Decidimos falar com uma mulher com garra, que fosse um exemplo no desporto que pratica. Facilmente chegámos ao nome de Jéssica Silva, por tudo aquilo que ela demonstra enquanto jogadora de futebol. Fomos até ao Benfica Campus, centro de treinos do Benfica, conhecer um bocadinho do muito que esta mulher de 29 anos tem

Vou começar com uma pergunta fácil. Quem é a Jéssica Silva aos 29 anos?

Antes de mais, muito obrigada por se lembrarem de mim. Eu acho que a Jéssica Silva é uma pessoa e uma jogadora cool. É uma jogadora esforçada e feliz, é uma pessoa orgulhosa daquilo que tem traçado ao longo da sua vida.

 O que é que ainda há da menina que nasceu em Vila Nova de Milfontes e passou por lá os primeiros seis anos de vida?

Para já há a paixão, o gosto por jogar futebol. Ou melhor, na altura, por jogar à bola. Agora é jogar futebol, as coisas estão mais sérias. Mas é alguém que ainda corre atrás da bola por pura paixão. E isso acho que é impagável. Não há contrato, não há nada. Eu gosto muito daquilo que faço e ter a oportunidade de passar uma mensagem quer dentro de campo, quer fora dele. Foi algo que o futebol me deu e eu estou muito grata ao futebol. Quero continuar a sorrir dentro e fora de campo e a fazer as outras pessoas felizes também.

 São cinco irmãos, quantos rapazes e quantas raparigas?

Nós somos quatro raparigas e eles são só dois rapazes. (Risos)

 São todos determinados e decididos como tu?

Sim, claro que sim. (Risos) Eu fui a filha que saiu de casa mais cedo. E que se viu a defrontar as outras barreiras de vida mais cedo. A que teve de sair de perto do colo da mãe, dos manos. E aquela que se tornou mais independente, mais cedo. Mas todos temos uma garra de viver, amamos muito a vida e tentamos sempre procurar a nossa felicidade. Isso é algo que temos todos em comum. Também muito passado pelas avós, pela mãe, que são umas lutadoras.

Foste a que passou mais cedo por essas dificuldades e, depois de teres jogado à bola com as laranjas do quintal da tua avó, começas a jogar futebol longe de Vila Nova de Milfontes, quando vais viver com a tua mãe, irmãos e padrasto para a zona de Águeda. Como é que foi assumir que querias ser jogadora de futebol?

Quando eu falo das adversidades, aquilo que me apareceu mais cedo foi realmente eu ter ido para a Águeda e ter percebido, quando comecei a jogar, que era aquilo que eu queria fazer. Ou seja, já me estava a preparar porque sabia que era aquele rumo que eu queria tomar. Eu sabia que tinha de ir tomando alguns passos para sair de Portugal, porque queria tornar-me jogadora profissional de futebol. As coisas aconteceram de uma forma muito natural. Primeiro, até chegar a Águeda, até ter uma colega que me encontra e diz que eu tenho muito jeito, para experimentar. Eu gostava realmente de jogar futebol, mas eu não sabia que existiam equipas femininas. Eu não fazia ideia, não sabia que o futebol podia ser profissional. Portanto, assim que percebi, assim que tive a perceção de que havia outras jogadoras portuguesas noutros clubes lá fora, eu tomei logo a decisão: ‘Eu quero, eu tenho de sair de Portugal.’ E foi isso que aconteceu. As coisas acabaram por acontecer de uma forma muito rápida. Tive de tomar algumas decisões que, na altura, custaram. Inclusive, ter de deixar a casa da minha mãe e dos meus irmãos e passar a viver com a minha treinadora. Naturalmente, também havia conforto, mas não é a mesma coisa. Mas aconteceu tudo de uma forma natural e estou muito orgulhosa porque acho que tomei as decisões certas. Também porque tive pessoas à minha volta que me ajudaram a tomar essas decisões.

«Eu queria jogar futebol, não o pude fazer por causa do que ele viu»

Essas pessoas certas também ajudaram a moldar a tua personalidade na adolescência. Há um período difícil quando tu és obrigada a deixar de jogar por uma situação que o teu padrasto presenciou e que eu gostava que tu partilhasses connosco.

Eu falei poucas vezes, mas a verdade é que, sim, houve um episódio... Eu lembro-me de ter ido fazer um primeiro treino a uma equipa de futebol. Elas, naturalmente, não eram profissionais. Fiz o treino, tudo ok, mas o meu padrasto foi-me levar ao treino e viu duas raparigas a beijarem-se à porta do balneário. Ele não gostou nada do que viu e nesse ano eu não pude entrar no futebol porque ele proibiu-me, mas eu também soube aceitar na altura… Só no ano a seguir é que comecei a jogar futebol. Na altura foi algo que me custou e a minha mãe fala muitas vezes disso e dá esse exemplo: ‘Ah, tens de agradecer a Deus porque realmente soubeste aceitar.’... Foi uma situação difícil para mim porque eu queria jogar futebol, não o pude fazer por causa do que ele viu.

 Como é que geriste isso? Agarraste-te à religião, sendo vocês evangélicos?

Eu lembro-me de ter ficado revoltada porque eu queria muito e foi logo um não. Eu fiz aquele treino e por causa do que ele viu nunca mais voltei. Chorei muito, estive uma semana a chorar, mas aceitei. Foi uma decisão do meu padrasto que era como pai e tive de aceitar. Era uma criança e pronto.

O futebol feminino estava muito marcado pela questão homossexualidade que sentiste logo em miúda. Como é que tu, que gostavas tanto de jogar futebol e querias tanto jogar futebol, conseguiste encontrar o teu espaço de afirmação também com todas essas dificuldades?

Isto tem sido uma luta, não só minha, de todas as jogadoras. De todos os intervenientes desportivos à volta do futebol feminino. Claro que são dois temas distintos, mas naturalmente eu sempre fui uma miúda muito consciente e serena. Nunca vi de uma forma negativa a diferença, digamos assim, que não é diferença. Eu também tive de me educar a mim e fui educada a tentar perceber o que era e o que não era, em relação à homossexualidade, ao assédio, a tudo. Fui crescendo e fui-me educando, fui procurando não aceitar a diferença que estava imposta no futebol feminino. Há diferença, mas nós não somos diferentes. Não sei se isto soa mal, mas continuo a dizer que o futebol masculino é diferente do feminino. É por aí que eu digo que somos todos iguais, mas somos todos diferentes. Mas, por pessoas como eu, e como diversas jogadoras, já não tenho problema de falar. Temos lutado para que esses preconceitos sejam dissipados da modalidade. Mas eu também acho que isso já não é uma questão do futebol feminino. Provavelmente, se falarmos da moda, também vão dizer que os modelos são todos homossexuais. Eu acho que isto acaba por ser uma luta e um caminho que, todos e todas, temos percorrido para mostrar que isso não interessa sequer. O mais importante é aquilo que nós fazemos dentro de campo. Não nos podem dar preconceitos porque jogamos futebol ou porque vestimos as calças mais largas ou de uma forma mais exuberante.

Jogar futebol com... maquilhagem

Até porque aquela ideia de que só jogava futebol quem era Maria Rapaz já ficou lá muito atrás e hoje há várias jogadoras, inclusive tu, que jogam de eyeliner.

Eyeliner e mais… Eu maquilho-me. Antes toda a gente gozava, agora já tenho colegas que também se maquilham nos jogos. Lá está, isto tudo é um caminho. Primeiro estranhas, mas depois entranhas. (Risos) Acho que eu fiz o caminho de uma forma natural e como já era meio vaidosa isso ajudou a dissipar esses preconceitos, essa ideia pré-concebida de que as jogadoras são mais masculinas. Sim, podem ser mais masculinas ou mais femininas, isso não interessa nada. Agora, não interessa se gostas de usar eyeliner, se não gostas, se usas os calções mais assim ou mais assado, mais apertados ou largos… Nós temos é que poder ser nós próprios e não temos de ter medo disso.

 Onde é que desconstruíste todos esses preconceitos? Foi na experiência na Suécia, no Levante, no Lyon?

Acho que nos diferentes clubes onde estive, nos diferentes países onde vivi. Na Suécia, lidei com as melhores jogadoras do mundo. Ampliaram a minha visão, não só para o futebol. O lifestyle delas inspirou-me muito para aquilo que podia ser a minha vida, porque eu não era quadrada (Risos) Eu queria ser eu e limitava muito a minha vida social. Não estava com os meus amigos, não jantava com os meus amigos, não ia a uma pista de dança, não fazia nada. E elas ensinaram-me que podia ter vida social que não tem mal nenhum. Não podia era ter jogo amanhã e sair hoje.

 No Lyon ganhas a tua primeira Liga dos Campeões e és a primeira portuguesa a consegui-lo. Foi bom para ti fazer parte desse nível de futebol?

Foi muito bom. Foi a experiência que mais me nutriu, quer em termos pessoais, quer desportivos e competitivos. Foi algo histórico que marca a minha carreira, mas encontrei ali um grupo humano 10 estrelas, e tornei-me amiga de muitas dessas jogadoras. Elas deram-me conselhos para a vida inteira, porque foi difícil até encontrar um espaço para poder jogar e houve muita luta, mas por outro lado sentir o reconhecimento das melhores jogadoras do mundo foi algo que me deixou bastante agradecida e com uma felicidade imensa.