«Joguei sempre até saber que estava grávida e depois tirava leite antes de treinar»

DIA DA MULHER «Joguei sempre até saber que estava grávida e depois tirava leite antes de treinar»

RÂGUEBI08.03.202412:55

Mãe e filha, Sofia Nobre e Matilde Goes, sagraram-se, em campo, campeãs de râguebi pelo Benfica. Duas gerações de jogadoras com ligação umbilical. Em conversa com A BOLA sobre paixão pela modalidade, família, maternidade e saúde mental

No dia 24 de janeiro, ao minuto 75 do jogo da final da Divisão de Honra feminina de râguebi, Sofia Nobre, 53 anos, número 20 na camisola encarnada e capacete azul, pisou o relvado do campo A do Centro de Alto Rendimento do Jamor. Entrou a tempo de festejar, em campo, o título do Benfica, após triunfo (25-0) sobre o Sporting, que termina a série de sete temporadas consecutivas dos leões sempre a vencerem o campeonato do principal escalão da modalidade.

Para Sofia Nobre, nome incontornável no râguebi feminino português, esta foi uma conquista especial. Por duas ordens razões, uma coletiva, a outra, pessoal. A primeira: desde 2016 que o Benfica não erguia o troféu de campeãs nacionais, conseguindo-o pela nona vez no seu historial, entrando nestas contas as variantes de sevens, 10, 13 e 15. Título ainda mais celebrado, em ano de centenário da modalidade no clube. A segunda e não menos importante: nessa tarde, a veterana jogadora ergueu a placa de campeão - peça de madeira com o nome do clube vencedor inscrito - ao lado da filha Matilde Goes, 20 anos, também jogadora das águias.

A BOLA assistiu ao momento e esteve à conversa com mãe e filha jogadoras. Falou-se de paixão e dedicação ao râguebi, de maternidade, família e de saúde mental.

A idade é, ainda, um posto. Desta forma, é Sofia Nobre, a mãe, que agarrou a conversa. Numa das suas gavetas da memória, recua ao século passado, ao tempo em que tudo começou. «O meu primeiro clube foi o Benfica, por volta dos 14 anos participei em torneios pontuais, no Belém, CDUL, Agrária, ISMAI no Porto, CRAV e Loulé», recorda. «Depois comecei a treinar no Grupo Desportivo da Costa, com os rapazes. Em 1995, não havia râguebi feminino, por isso treinei sempre com eles».

A competição feminina era uma miragem. «A nível competitivo comecei a jogar tarde, pelos 20 e tal anos. Quando nasceram os campeonatos femininos, em 2001, ano da aposta no râguebi feminino mais a sério, fui para o Grupo Desportivo Pescadores da Costa da Caparica e lá fui campeã nacional», assinala Sofia Nobre. O emblema de Almada, primeiro campeão nacional, repetiu a dose, três anos depois.

«Desde aí não parei mais», conta. Continuou do outro lado do rio. Atravessa a ponte sobre o Tejo e entra no clube encarnado em 2004. Aí conheceu toda a espécie de vitórias. «No Benfica, ganhei todos os campeonatos (9 no total) nas variantes de sevens, 10, 13 e agora em XV», além de taças de Portugal, Supertaças e o circuito nacional de sevens, refere a mãe Sofia, sem discriminar as vitórias por troféu.

Não parou de ganhar nos anos seguintes, enquanto o clube da Luz rivalizava no palmarés com a titulada Agrária. E nunca parou de jogar. «Nem mesmo depois de três gravidezes», surpreende. «Da Matilde, a primeira, Maria do Carmo, a do meio e do Vicente», todos separados por cinco anos de diferença, dos 20 aos 10. «Joguei sempre até saber que estava grávida», soltou uma forte gargalhada. «A partir dos dois meses não jogava. Bom...cheguei a jogar enquanto estava grávida, mas não sabia, foi antes dos dois meses», ri, de novo. Detalha pormenores da conjugação entre maternidade e a atividade desportiva e competitiva. «Nunca parei. Nas gravidezes, parava nos meses finais, mas não totalmente, fazia exercícios sempre. Até aos seis meses treinava sem contacto; nos últimos três já não treinava. Passado um mês de ter filhos começava a treinar e a jogar».

E como conjugar as duas vidas, a de mãe e de jogadora? «Sempre dei de mamar aos três, tirava leite antes de treinar. Cheguei a dar de mamar antes de jogar beach rugby. Antes dos jogos tirava leite, não havia tempo para dar de mamar e jogava», detalha, fechando o tema que o destino lhe reservou durante mais de 20 anos da sua existência.

‘Não deixes de jogar pela idade’

Tempo para regressar à tarde de 24 do mês de janeiro e à final do campeonato. Entre os festejos de jogadoras, equipa técnica, familiares e estrutura benfiquista (Fernando Tavares vice-presidente das modalidades esteve no Jamor e fez questão de dedicar elogiosas palavras a Sofia Nobre pela dedicação e perseverança) escutou-se, em surdina, que, após a travessia do deserto de sete anos, a jogadora que não olha para idade já podia parar de jogar.

«Odeio que me façam essa pergunta sobre quando vou terminar. O meu pai [Carlos Nobre, antigo internacional de râguebi, jogador, treinador e responsável pela secção no Benfica e fundador do râguebi feminino], sempre me disse: vais deixar de jogar quando deixares de te divertir. Portanto, nunca deixes de jogar por causa da idade. O teu corpo vai dizer-te para deixares de jogar», cita.

O impulso não se sustenta só na lição paterna. «Continuo a ter a mesma alegria em ir para os treinos, a não faltar, não ficar chateada por não ser convocada, jogar mais, ou menos», admite. «Gosto de estar bem fisicamente, ir ao ginásio, ter a disciplina de treino três vezes por semana. É bom ter essa disciplina mental, esse compromisso e entrega, além de ser muito mais divertido», frisa, antes de analisar o caminho até ao presente.

«Entras no râguebi para fazer a diferença e esse foi o meu percurso. Queria ser mais rápida, mais forte, agora entras numa onda diferente, entras para ajudar, se tiver de jogar 40 minutos, jogo, se tiver de jogar dez, jogo. Tens de estar sempre disponível. Tens de estar para dar e não receber». Na verdade, já deu muito, mas será que a idade ainda dá para mais. «Como tudo na vida, tens menos características atléticas, mas tens outras, és mais racional e menos emotiva, és mais calma, tens mais sabedoria que, se calhar, não tinha aos 20 e 30 anos», esclarece.

‘Joguei com rapazes’

Tempo agora para apresentar a filha que, para quem segue o râguebi feminino, dispensa-o. «A Matilde tem o percurso que qualquer atleta quer ter. Dos sub-8 até aos sub-14 treinou com os rapazes. Integrou a equipa sénior feminina aos 14, teve um ano sem jogar (à espera de atingir os 16 anos), só treinava e começou a jogar aos 16».

Passa a bola (o telefone) a Matilde Goes. Está recolhida no quarto a estudar para um exame de MATS e Técnicas de Investigação. «Sou estudante de Ciências Políticas e Relações Internacionais, na universidade Nova», começa por informar a filha mais velha da família Nobre Ferreira Goes.

Debaixo da juventude dos 20 anos, arrasta ainda indefinições próprias da idade quando se aborda o futuro. «Ainda não sei o que quero fazer depois de acabar o curso. Gostava de trabalhar num museu. Por isso, penso em fazer um mestrado em História ou História de Arte, interessa-me a museologia», diz a jogadora que ostentou o n.º 15 nas costas durante a final da Divisão de Honra feminina. Ser jogadora profissional de râguebi e seguir o exemplo de algumas portuguesas que foram para França não é caminho de uma só via que queira trilhar.

«Se calhar, acumular com os estudos, um estágio, durante um ou dois anos, num gap year, sim, agora como carreira, não. Fazer 10 anos está fora de questão», afirma Matilde Goes, que fala do percurso na modalidade, desde o início. Começou a treinar no Grupo Desportivo Direito. «Dos 8 aos 14 anos joguei com rapazes». Matilde Goes não se deteve em grandes histórias sobre esses primeiros anos, entre os rapazes. No entanto, abre exceção para falar de alguém que a marcou e continua a marcar. «O Vasco [Condado], o meu primeiro treinador [do Direito], é, de longe, o que mais me marcou».

Deu um passo em frente para um tempo prévio de entrada nas seniores encarnadas. «Fui operada, uma lesão na ginástica, e fiz a recuperação com a fisioterapeuta do Benfica, onde jogava a minha mãe. Comecei a ir aos treinos, a estar mais presente e o caminho já estava mais que traçado».

E continua: «Queria seguir, queria jogar, não me via a não jogar. O facto do avô [Carlos Nobre], pai [Francisco Goes] e mãe terem sido jogadores não entrou na equação de vontades. Tem mesmo a ver comigo», expõe. «É óbvio que se torna mais fácil ter a família no meio, a jogar e a estar envolvida. Sempre foi o meu desporto, embora tenha feito vários. A certa altura, tive de deixar a ginástica e ficar só com o râguebi, mas foi fácil. A ginástica deu-me o compromisso, a disciplina, a rotina e as boas bases».

‘Guardava tudo para mim’

À parte do clube do Luz e do primeiro título de campeã nacional, Matilde Goes fez a estreia pela seleção nacional em sevens (Women’s 7s Trophy), «em 2022, contra Israel» e em XV, «no jogo com a Suécia», no final desse ano, recorda. Somou internacionalizações entre 2022 e 2023 no Rugby Europe Trophy (2.ª divisão do râguebi europeu), no Rugby Europe Championship, primeira competição europeia se excecionarmos o Torneio das Seis Nações (competição fechada), em sevens e nos Jogos Europeus, torneio de apuramento para os Jogos Olímpicos Paris-2024.

Vinte anos e as asas das internacionalizações pareciam não parar de bater. Mas pararam. Ou antes, pausaram. Matilde Goes não segue, por opção pessoal, no lote de jogadores disponíveis para a estreia de Portugal no Rugby Europe Championship XV (REC 2024) como já não tinha estado disponível para acompanhar a digressão das lobas ao Brasil na janela de novembro do ano passado.

«Não estou a pensar fazer parte da seleção este ano. É uma pausa relacionada com a saúde mental. Não me sinto preparada para enfrentar a competição», confessa, secamente, a jogadora, suspendendo o raciocínio por segundos e deixando no ar tempo suficiente para absorver o impacto no muro no estômago que provocou. «A época passada foram 11 meses de râguebi, foi mesmo muito intenso e se calhar não soube gerir as coisas da melhor maneira. Guardava sempre tudo para mim e chegou a um ponto em que já quase nem gostava de râguebi», admite num relato íntimo e sem rodeios.

Ciente de tudo o que se passou, de forma ponderada, fecha, para já, uma porta à seleção nacional. «Primeiro, tenho de voltar a encontrar a minha confiança e o porquê de eu jogar antes de fazer parte de uma coisa que eu levo tão a sério e tão importante como a seleção», refere, prosseguindo no desabafo.

«Esta época não conseguia treinar, não me apetecia, não me conseguia sequer ver alguém a correr», revela Matilde Goes, que falhou as primeiras jornadas da temporada. Alcançado o título nacional, deixa tudo em aberto em relação ao resto da época, Taça de Portugal e Campeonato de Sevens. «Vamos ver», deixa em suspenso com a certeza de que o título ajudará na reflexão a ter.