João Manuel Pinto: «Conceição recuperou a mística que se tinha perdido nos últimos anos»
Sérgio Conceição, treinador do FC Porto, IMAGO

João Manuel Pinto: «Conceição recuperou a mística que se tinha perdido nos últimos anos»

NACIONAL27.09.202310:55

Antigo defesa-central partilhou o balneário com o atual treinador portista; nesta entrevista a A BOLA, elogia a carreira do amigo, eleva-lhe as qualidades humanas e recorda episódios em que Conceição ficava... «carregado de azia»

Vem aí mais um grande clássico do futebol português, o Benfica-FC Porto. Como antevê este jogo de sexta-feira? É sempre um jogo especial, não há como fugir a isso. Digam o que disserem, passem as épocas que passarem, um Benfica-FC Porto ou um FC Porto-Benfica foi, é e será sempre um jogo diferente. Pese embora todo o profissionalismo que os jogadores empregam em cada treino, antes de qualquer jogo, a verdade é que a semana que antecede os jogos entre estes dois grandes clubes do futebol português é de uma intensidade brutal. Tanto ao nível físico como psicológico. Porque essa é outra vertente que também deve ser realçada. Um clássico desta natureza mexe sempre com a cabeça dos jogadores e um dos grandes segredos passa também pela preparação mental e como os atletas encaram para este tipo de duelos.

É uma rivalidade potenciada ao máximo… Sem dúvida nenhuma. E eu, que estive lá dentro e que até tive o privilégio de jogar nos dois clubes, tenho perfeita noção disso. Continuo a defender que a rivalidade faz parte do futebol, deve continuar sempre a existir, até porque isso, no fundo, traduz na perfeição a dimensão dos clubes grandes, neste caso, o Benfica e o FC Porto. Naturalmente que repudio todos e quaisquer incidentes que extravasam aquilo que é o futebol, o jogo jogado, mas tudo o que seja vivido dentro dos limites é saudável e alimenta sempre as expectativas dos jogadores, das equipas técnicas, dos dirigentes e, claro está, dos adeptos. A rivalidade, quando não elevada a extremos que não devem, sequer, pontificar no futebol, é sempre de elogiar.

Também por isso é que se diz que os clássicos podem valer mais do que três pontos? Precisamente. As equipas podem não estar nos seus melhores momentos, ou pelo menos uma delas, mas uma vitória num clássico pode mudar tudo. Lá está a questão mental de que falava… Um triunfo diante de um rival pode ser o dínamo perfeito para que o estado de espírito de um grupo que não esteja nas melhores condições possa inverter-se automaticamente e, a partir dessa altura, as coisas caminharem numa espiral ascendente. Algo que, naturalmente, tende a trazer resultados positivos no futuro. Uma vitória num clássico significa apenas três pontos na tabela classificativa, é indesmentível, mas, em teoria, são três pontos muito especiais.

João Manuel Pinto não esconde a sua admiração por Sérgio Conceição

Quem parte como favorito? Vou ter de responder de forma típica, mas porque é mesmo nisso que eu acredito. É um jogo de 50/50. O favoritismo nestes jogos vale o que vale. É mesmo repartido ao máximo. Porque, lá está, há outros fatores que podem superar ou, pelo menos, ajudar a que as estratégias utilizadas pelos treinadores tenham, ou não, sucesso. É certo que, estatisticamente, o FC Porto tem sido feliz na Luz nos últimos anos, mas também não é menos verdade que o Benfica foi ganhar ao Dragão na época passada. Além disso, o Benfica é o atual campeão em título e é sabido que os seus adeptos podem fazer a diferença nos jogos em casa. Mas o FC Porto tem todas as condições para dar sequência ao que fez nas temporadas anteriores e regressar da Luz com uma vitória. E estes dados comprovam, no fundo, o que eu estava a dizer relativamente ao favoritismo: não existe. 

Falou das últimas épocas do FC Porto na Luz. Com Sérgio Conceição ao leme, os dragões somaram quatro vitórias e um empate, cedendo apenas uma derrota… Aí está. A estatística comprova que o FC Porto tem sido muito feliz quando joga no Estádio da Luz. Especialmente desde que o Sérgio Conceição é o treinador. Esses dados têm uma explicação…

Conceição em momento de euforia após mais uma vitória

Qual é a explicação? Além da qualidade dos jogadores do FC Porto que estiveram presentes nesses clássicos, naturalmente, nunca devemos esquecer o tremendo contributo de Sérgio Conceição. Não só ao nível estratégico, mas também motivacional. O Sérgio é incrível!

Exigência do técnico portista é inegociável, salienta João Manuel Pinto

Parece ser um adepto indefetível do trabalho de Sérgio Conceição… Não quero parecer. Sou mesmo! Porque o Sérgio Conceição é a cara dos valores do FC Porto. Recuperou a mística que se tinha perdido nos últimos anos e reergueu o clube com o seu profissionalismo e com a qualidade do seu trabalho. É um treinador extremamente exigente, que não perdoa faltas de entrega, mas que, e acima de tudo, consegue, melhor do que ninguém, extrair o máximo dos jogadores. Com todos os problemas financeiros que o clube atravessou nos últimos anos, e que são do domínio público, o Sérgio Conceição fez autênticos milagres no FC Porto. É que não só consegue ganhar títulos como também potencia jogadores que depois são vendidos por verbas elevadíssimas.

Até onde pode chegar Sérgio Conceição? Até onde ele quiser. Porque tem qualidade para estar em qualquer clube do mundo. Na minha opinião, é, sem sombra de dúvida, o melhor treinador em Portugal e um dos melhores portugueses. Com todo o respeito pelo FC Porto, gostava de o ver a trabalhar nos emblemas de topo do futebol mundial.

Jogaram duas épocas juntos no FC Porto, 96/97 e 97/98. O que recorda dessa altura? Tempos fantásticos. Não só a nível pessoal, como também coletivo. Eu estive lá mais tempo [n.d.r. entre 1995 e 2001], conquistei quatro Campeonatos, três Taças de Portugal e duas Supertaças, mas durante as duas épocas em que tive o privilégio de partilhar o balneário com o Sérgio vivemos momentos de grande glória. Fomos campeões nacionais nos dois anos e vencemos uma Taça e uma Supertaça. 

Para lhe dar conta do sentimento dele quando as coisas não corriam bem, e estamos a falar em simples peladinhas nos treinos, nós chamávamos-lhe o ‘asiático’. Ficava com uma azia… [risos]

E como era o Sérgio Conceição? Já era muito do que é hoje. Um senhor. Sim, porque quem não o conheça pode achar que ele é isto ou aquilo, mas, na verdade, o Sérgio é um ser humano de excelência. Fora de campo tem valores que deviam ser transversais a toda a sociedade. É super educado, prestável, amigo do seu amigo e, além disso, tem uma vertente solidária que só o dignifica ainda mais. Mas dentro do campo já era o ‘animal’ competitivo que é hoje.

Como se revelava esse lado de animal de competição, usando a sua expressão? O Sérgio era o chamado jogador à Porto. Encarnava na perfeição o espírito do dragão. Trabalhava todos os dias nos limites, apresentava uma intensidade em cada treino que fazia inveja a todos quantos observavam e, depois, tinha também a sua responsabilidade que se traduzia na importância no balneário. Tínhamos um grupo fantástico, com várias referências. Éramos uma verdadeira família. E o Sérgio potenciava muito tudo isso...

Sérgio Conceição fica sempre com cara de poucos amigos quando perde

Mas quando perdia… Ui! Nem é bom pensar. Isso ninguém podia falar com ele. Tal como é hoje, lá está. Mas isso está exatamente relacionado com a exigência que ele próprio impõe nas suas ações e no seu trabalho. Já era assim enquanto jogador e continua igual enquanto treinador. 

Recorda algum episódio especial que viveu com ele? Houve vários. Alguns deles muito bons. Mas para lhe dar conta do sentimento dele quando as coisas não corriam bem, e estamos a falar em simples peladinhas nos treinos, nós chamávamos-lhe o ‘asiático’. Ficava com uma azia… [risos]

Mesmo nas peladinhas? Porque ele perdia algumas vezes e depois tinha de pagar o jantar. E o que estava em causa não era o pagar o jantar, mas sim o ter perdido a peladinha. Os treinos eram autênticos jogos para ele. Entregava-se com a mesma intensidade, com a mesma dedicação, e quando as coisas não lhe corriam bem ficava ‘cego’ [risos].

Galeno e Alexander Bah estiveram várias vezes frente a frente no encontro da Supertaça Cândido de Oliveira

Na temporada em curso, o FC Porto perdeu com o Benfica para a Supertaça. Que peso é que esse resultado pode ter? Apesar de ter sido já esta época, os momentos são diferentes e, como tal, a análise não pode ser de uma comparação simples. Voltamos atrás e regressamos à tal teoria de que os clássicos são sempre jogos diferentes. E cada clássico tem uma história diferente. Mesmo dentro da mesma época. Além de que, convenhamos estamos a falar do campeonato, uma prova de regularidade, ao passo que a Supertaça é uma final, é um jogo que decide um troféu. As circunstâncias são completamente distintas. No entanto, há algo que eu acho que pode vir a jogar a favor do FC Porto na sexta-feira: a ferida que ainda pode estar aberta depois dessa derrota. Sabe-se como é difícil o FC Porto perder dois jogos seguidos, não é nada normal, especialmente na liderança de Sérgio Conceição, e, dessa forma, acho que esse fator psicológico, apesar de advir de uma derrota, pode vir, agora, a ser benéfico para o FC Porto. E para a tal estratégia psicológica que Sérgio Conceição sabe adotar e potenciar como ninguém.

O FC Porto já não tem OtávioÉ um facto. Um jogador extraordinário e com o qual foi feita uma venda por verbas fantásticas. Mas o Sérgio tem a capacidade de se reinventar e de arranjar sempre soluções. Provas disso não faltam… Apesar da saída do Otávio e da baixa do Marcano, devido a lesão, o FC Porto continua muito forte. E com um treinador que integra novos jogadores como não se vê com frequência em clube nenhum.

Internacional português, agora no Al Nassr, da Arábia Saudita, deixou uma marca eterna na história dos azuis e brancos