Breve retrato histórico sobre artes marciais e desportos de combate em Portugal (artigo de Vítor Rosa, 90)

Espaço Universidade Breve retrato histórico sobre artes marciais e desportos de combate em Portugal (artigo de Vítor Rosa, 90)

ESPAÇO UNIVERSIDADE26.03.202015:15

Se quisermos conhecer um pouco da história do surgimento de algumas artes marciais em Portugal, temos que recuar até ao início do século XX. O primeiro período, que podemos situar entre 1900 e 1945, caracteriza-se, sobretudo, pelo surgimento em território nacional das primeiras práticas orientais de luta, sobretudo japonesas, despertando a curiosidade das classes sociais urbanas e das forças militares e de segurança pelo seu exotismo e vertente de uso social (defesa pessoal).

As primeiras imagens e fotografias de que temos conhecimento sobre as modalidades orientais, sobretudo de jujutsu e de kendo, são reveladas pela revista Illustração Portugueza (n.º 79), de 26 de agosto de 1907, quando da passagem por Lisboa de dois navios japoneses (Tsukuba e Chilone), sob o comando do almirante Goro Ijuin (1852-1921). Depois de 1907 outras publicações da época (as revistas Tiro e Sport, n.os 370 e 373, de 10 de janeiro e fevereiro de 1908; Illustração Portugueza, n.º 139, de 19 de outubro de 1908; Sports Ilustrados, de 22 de outubro, 3 e 10 de dezembro de 1910), apresentam nas suas páginas imagens e referências sobre lutadores japoneses que por Lisboa e Porto foram passando. A Illustração Portugueza (n.º 139), de 19 de outubro de 1908, por exemplo, dá conta de que o primeiro mestre japonês que lutou jujutsu em Portugal foi Sada Kasu Uyenishi, popularmente conhecido por “Raku” (atua em Barcelona a partir de 01 de setembro de 1907, através do Circo Ecuestre, no Teatro Tivoli, surpreendendo, igualmente, os espanhóis. 

Entre novembro de 1907 e julho de 1910, Raku terá visitado cerca de duas dezenas de países europeus, tendo realizado mais de duzentas demonstrações). Em Portugal, o Coliseu, de volta à cena, reabre com uma nova companhia de circo no dia 28 de setembro de 1907. O lutador japonês Raku deu uma sessão pública de jujutsu, lutando com Diogo Conelli, lutador greco-romano. A sua estreia deu-se no dia 27 de dezembro, tendo lutado também com o brasileiro João Cardoso de Moura, com o inglês Dillon, o japonês Hidesuki Hano e os portugueses Manuel Loureiro Grilo e Rui Cunha. Infelizmente, não temos conhecimento de imagens do acontecimento.

Mas os repórteres da revista Illustração Portugueza (n.º 139) registaram o momento de forma escrita, mostrando um sentido emocional: “Raku entrou na arena do Colyseu e a sua figurita magra, encolhida, os seus óculos, o seu sorriso tímido para aquele público de médicos, de jornalistas, de homens de sport, era como uma desillusão. Aguardava-se uma créatura forte, musculosa, um homem com o ar triumphal de vencedor e d’ahí a surpreza que logo se manifestou n’uns risinhos e n’umas phrases ditas em segredo. Qualquer pessoa se sentia capaz de destruir o pygmeu que se propunha bater-se à face d’uma cidade inteira. Porém, quando elle começou fazendo as suas demonstrações com o seu auxiliar, os risos foram cessando, uma atenção enorme começou a prestar-se ao nipponico, que com a maior tranquillidade do mundo ía vencendo. Por fim, um dos assistentes, rapaz conhecido no sport, quiz experimentar as forças de Raku e saltou para a arena. Dentro de pouco estava por terra, sentia o golpe forte do japonez a estorcegar-lhe o braço e vinha-lhe uma dôr tão violenta que se debatia até que ele o largava com o ar sereno, o mesmo ar grave de sempre. Agora todos rodeavam o sportsman que fazia justiça às qualidades do adversário. N’essa tarde, sob a cúpula do Colyseu, o ju-jutsu começou a consagrar-se para os portuguezes”.

Raku exibe-se durante cinquenta e seis noites e matinées. Era na altura um homem novo (27 anos), de estatura baixa (1,65 m), magro (58 kg) e exibia um bigode preto, pequeno, cujas pontas terminavam na comissura dos lábios, dando-lhe um ar severo. Fazia-se acompanhar por um inglês de nome Nelson, que exercia as funções de seu secretário. Numa entrevista concedida à revista Tiro e Sport, de 10 de janeiro de 1908, Raku dizia-se natural de Osaka e que o seu pai o tinha obrigado a praticar jujutsu como meio de revigorar a sua debilidade física. Pelas suas naturais aptidões, depressa foi notado pelos seus colegas e foi nomeado instrutor na Escola Militar de Educação Física (“Imperial”) e, posteriormente, na Escola dos Instrutores da Escola de Educação Física da Polícia e na Escola Militar para os Oficiais. O desejo de ser o introdutor do jujutsu no Ocidente levou-o a sair do Japão por volta de 1898 a caminho de Inglaterra, Alemanha, País de Gales, Irlanda, França, Bélgica, Espanha e Portugal. Nas demonstrações que fez com esta prática oriental de combate, acabaria por vencer o campeão dos médios e pesados de luta, Gruhn, do Reino Unido.

O reconhecimento deste método de combate pelos ocidentais, e a procura da “modernização” da formação militar e de segurança, levou-o a ser convidado para ser instrutor de jujutsu em vários locais: Escola Militar de Aldershot, em Shorncliff Camp; Escola Naval Militar; departamentos da polícia inglesa, etc. Considerado um dos maiores “embaixadores” do jujutsu na Europa no início do século XX, Raku era acompanhado nas suas digressões por vários compatriotas. As suas demonstrações enchiam as salas de espetáculo.

O segundo período, que situamos de 1946 a 1974, da implementação e evolução a nível nacional das práticas de luta orientais é marcado pela criação das primeiras organizações dedicadas ao ensino destas práticas desportivo-marciais em território nacional, pelo estabelecimento de residência de mestres oriundos da Ásia (Japão, China, Coreia, etc.), e, consequentemente, pelo surgimento e proliferação de artes marciais até então desconhecidas, pela criação de várias comunidades de praticantes, levando a uma popularização das várias modalidades, e pelo controlo e fiscalização do Estado português (através da Comissão Diretiva das Artes Marciais, criada em 1972), procurando impor a disciplina dos praticantes, a sua obediência às leis e à ordem estabelecida, quer dizer, a sua tradicional submissão à autoridade, sob pena de… (ser punido segundo a lei).

Nos anos 1940, dominados pela Segunda Guerra Mundial, o regime totalitário de Salazar adotava em Portugal uma posição neutra, mas as suas simpatias tinham uma inclinação pró-Nazi. É num contexto em que a censura e a impiedosa repressão às liberdades civis eram uma constante que surge a mais antiga academia do país dedicada ao treino, à prática e ao ensino regular do jujutsu/judo. Surgiu, em maio de 1946, em Lisboa.

O nome escolhido foi “Academia de Judo”. O então ministro do Japão em Portugal, Iotaro Koda, encarregou-se de oferecer os tatamis (tapetes) e os kimonos (vestimenta). Competia a esta Academia promover o espírito tradicional do judo, visando essencialmente a preparação para o combate real; adotar as técnicas de treino do Kodokan de Tóquio, não relegando as técnicas das escolas congéneres, na medida em que o próprio Kodokan exortava à sua investigação; relegar a seleção dos praticantes por pesos, por ser contrário à vida real (não considerava nem cultivava o judo como prática desportiva). O fundador da Academia foi António Hilmar Schalck Corrêa Pereira (1906-1982). Os dados a que tivemos acesso, evidenciam que o contingente de praticantes cresceu. Dos 17 efetivos de 1956, passa para 89 em 1963. Corrêa Pereira escreve um trabalho de reflexão, intitulado “A Essência do Judo” (1950), veiculando a transmissão dos valores e comportamentos ditados por esta prática oriental. Adotou o pseudónimo de Minuro. Nesta obra, o autor realça os aspetos fundamentais do judo marcial, aplicáveis, no seu entender, a todos os ramos da atividade humana (estudo, combate, negócios, diplomacia, amor, etc.). Estava convencido de que o judo que preconizava não era para todos. Com o aumento de “clientes”, a Academia tornou-se demasiado exígua. Apesar da renovação total deste centro de prática em 1957, foi preciso arranjar um espaço mais conveniente e com melhores condições para a prática.

Assim, e em plena época salazarista, abriu-se em 1958 o centro de prática de Entrecampos, na rua Visconde de Seabra, n.º 18, que passa a chamar-se Academia de Budo. É nesta academia, e com a vinda de mestres japoneses e de praticantes de diferentes nacionalidades, que vão surgir outras artes marciais, nomeadamente o karaté. À medida que os praticantes vão sendo credenciados, e com as várias cisões individuais (que passaram por questões de competição ou não competição das modalidades; opção de percursos profissionais, entre outras), vão também abrindo outros espaços de treino a nível nacional. Outras dinâmicas (criação de clubes, associações, etc.) foram registadas no Norte de Portugal. A Comissão Diretiva de Artes Marciais viria a ser extinta em 1987. As artes marciais passaram para a tutela da então Direção Geral de Desportos (DGS). Ao serem integradas neste organismo estatal foi-lhes negada essa denominação, englobando-as no domínio da prática desportiva. Convém não esquecer que o próprio Jigoro Kano teve muita relutância em considerar o judo como desporto, e acabou por ser o primeiro representante da Federação Internacional de Judo.

Vítor Rosa

Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares de Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa