Vou contar-vos um segredo
Acordei de madrugada e a minha mulher dormia, serena, desejando eu, como acontece há 15 anos, que a sonhar comigo. Havia só um tom de verde no quarto, do mostrador do relógio. Três e vinte e oito. As miúdas na cama, também, compus-lhes a roupa, uma ia acordando, pareceu-me que acordou, mas não.
Não costumo acordar de madrugada e por isso não soube o que fazer. Peguei num casaco azul sempre num ganchinho na porta do quarto, ali para o que for preciso e quase nunca é. Encontrei as pantufas na sala, junto a um pé do sofá. Um ou outro brinquedo pelo chão, que não vi, mas pisei. A dor fez-me acordar mais depressa e se dúvidas tivesse do meu estado desperto ali teriam estacado. Na cozinha, acendi a luzinha da bancada - tenho um comando para acender uma luzinha apenas e nunca compreendi porquê -, bebi água e acordei mais do que antes. Qualquer acordar é aos poucos, ao contrário do que nos parece. Corri a porta da varanda, pareceu-me que apenas para dar sentido ao meu casaco e nada mais. Casaco polar, lê-se na etiqueta. Quão desafortunado pode ser um casaco polar em Portugal? Inspirei o ar noturno, que dizem que cura. Ouvi um arrulho de um pombo no telhado, talvez a cumprimentar-me. Talvez seja o corvo de Poe crocitando «nunca mais» e eu a julgar que me cumprimentam. Esperado, o sossego, àquelas horas. Três e trinta e três. Foi uma normalidade cómoda: reparar que as coisas vazias na rua não eram uma obrigação, eram apenas o sono, tão-somente as pessoas que dormiam de noite, como fazem as pessoas, como acontece nas noites.
Vou acordar de noite outra vez. Só fora de horas me é possível reencontrar o habitual. Ocupar um vazio que não foi imposto.