Vi o que não vi
Vendo o Portugal-Ucrânia, estranho me pareceu que estando a vê-lo não visse o Cristiano Ronaldo. Não, não vi por lá o jogador que ele é - fazendo da criatividade e do galope, as centelhas que dos seus pés se transformam em deslumbrantes fogos de artifício. Não vi por lá o jogador que ele é - enxergando o golo antes de qualquer outro em extraordinário dom de adivinhação. Não vi por lá o jogador que ele é - enfrentando qualquer concorrência não apenas para a iludir ou desconcertar, mas para lhe vergar a espinha e esmagá-la. Por isso me lembrei de Valdano a revelar porque no futebol o génio vive do engano (na finta ou na desmarcação, no enleio ou no tiro) e que quanto melhor enganar, melhor é o jogador - e do que Valdano contou a propósito (e em metáfora):
- Cruyff vinha desequilibrado do seu último drible e eu fui enfrentá-lo. Surpreendentemente, baixou os braços e reclamou falta ao árbitro num tom agressivo. Eu olhei para o árbitro para ver o que dava a discussão, mas nem houve resposta nem voltei a ver o Cruyff, que aproveitou a minha distração para mudar a velocidade e perder-me de vista…
É: talvez não haja prova mais poética para essa verdade absoluta: que quanto maior for o nível do engano, melhor é o nível do futebol - e de quem o joga. (Do engano, do atrevimento, da ousadia - e da cabeça nos pés que lá puser.)
Esse Cruyff que nos pés e na cabeça de Ronaldo faz de Ronaldo o que Ronaldo é - fugiu, sorrateiro, da Luz. Por isso Portugal foi o que foi - e foi o que foi porque do Ronaldo se espera mais do que só três remates, espera-se que faça mais mais do que aquilo que todos esperam que possa fazer (ou imaginar-se...)
PS: Eu sei: esse Cruyff poderia aparecer igualmente pelos pés de outros jogadores de Portugal (e não apenas do Bernardo Silva...) - e deles fugiu, também, sorrateiro, na Luz. Mas se não tivesse fugido, sorrateiro, dos pés do Ronaldo, eu (ou alguém como eu) não teria sequer pensado que fugira de outros pés e de outras cabeças (e desse no que deu).