Variações ‘Do estamos tramados ao somos campeões’
A alma é uma coisa indefinível e muito instável. No meu caso, o seu estado foi variando ao longo do jogo contra a Hungria. E de que maneira!
EM música, pega-se num tema e fazem-se variações, não só rítmicas como melódicas; há fugas e contrapontos, enfim há uma série de coisas que nada têm a ver com o futebol. Ou têm? Confesso que no meu caso têm!
Não sendo um especialista de comentário futebolístico, embora saiba dizer basculações, jogo vertical, lateralização, profundidade, etc., vejo um jogo com estados de alma que se vão alterando, como na música as variações. E foi assim que vi o Hungria-Portugal.
A entrada foi triunfal. Como é que a equipa e um punhado de adeptos conseguem cantar o Hino com tanto vigor? Fiquei cheio de esperança, os jogadores transpiravam força e vontade. Havia confiança e até diminuíram os tiques do meu querido Fernando Santos, tão mal-amado por tantos e que tantas alegrias deu a todos.
Quando o jogo começou aquilo que era um majestoso início, foi-se transformando. Primeiro num simples allegro, depois num preocupante andante e por fim num larghetto, que só não foi um largo bocejo porque, enfim, estava a ver Portugal e pus-me a pensar que só duas coisas unem, efetivamente, os portugueses, sejam eles de onde forem, tenham eles a origem que tiverem: a Seleção Nacional e o facto de pagarmos impostos à Autoridade Tributária (claro que a Seleção tem mais apoio).
Os húngaros, que também pareciam muito raçudos, afinal puseram-se à retranca. Os nossos rapazes passavam bem a bola, faziam as tais basculações, triangulações, passes verticais e em profundidade, lateralizações, mas falhavam golos como tudo. Lembro-me de Ronaldo (aquele a quem se faz vénia) ter desperdiçado um golaço de baliza aberta. Fizesse ele muitas destas quando jogou na inauguração do Alvalade XXI contra o Manchester, e não teria a carreira que tem.
Mas, enfim, o Ronaldo (aquele que é genial) redimiu-se no fim do drama, e lá chegaremos. Ainda na primeira parte, e em boa parte da segunda, andámos ao tiro ao boneco. O Gulácsi, que tem nome de prato regional, fez algumas defesas difíceis, sobretudo a um remate de Bruno Fernandes, aos 68 minutos, cuja defesa parecia impossível para um cozido à portuguesa, quanto mais para um Gulácsi…
E lá andávamos, enquanto o meu estado, que no remate do Bruno chegou a Allegro Moderato, descia para grave, com medo de chegar ao gravíssimo, quando aos 80 minutos um fora de jogo (aliás bem assinalado, diz Duarte Gomes, que é a minha Bíblia da arbitragem) anulou um golo marcado por eles aos 80 minutos. Reparem: faltavam 10 para acabar (mais os descontos) e nada. Pelo contrário, se não fosse o fiscal de linha ser competente, assim como o respetivo VAR, podíamos quase dizer adeus ao Europeu.
Quem não marca, acaba por sofrer, não é?
Seleção Nacional ganhou na estreia do Europeu, com Ronaldo a brilhar no final
‘VIVACÍSSIMO’
Atradição já não é o que era, dizia um anúncio, aliás bastante erradamente, porque não é a tradição que altera a qualidade, mas sim a forma como a vemos. De qualquer modo, a frase aqui dá-me jeito para afirmar que quem não marca até aos 84 minutos de jogo, ainda vai a tempo de marcar três nos 10 minutos (com os descontos) que faltam.
Foi o que aconteceu. E estes golos, além de me levarem a alma do vivacíssimo ao alegricíssimo (que corresponde de 168 a 177 BPM, ou batidas por minuto), têm características muito interessantes, diria quase mágicas. Em primeiro lugar, os principais intervenientes começam todos por R - Raphael, Rafa, Ronaldo. Em segundo lugar, Orban, que comunga o apelido com o malfadado primeiro-ministro húngaro, deu-nos dois golos. Em terceiro lugar, o terceiro golo foi realmente um enorme golo, sem palavras para o descrever, a não ser pela música e pelas artes. A bola circula por variadíssimos jogadores, numa envolvência, como na música se prepara a explosão final. Que no jogo foi o toque de Rafa para Ronaldo, seguido da simplicidade com que este fez o mais difícil.
Do somos sempre a mesma coisa (jogamos, jogamos, mas não marcamos), ao somos os maiores, ninguém nos trava, os andamentos do meu estado de alma foram em crescendo (que não é um tempo, mas uma intensidade). Do primeiro golo, gostei, obviamente, mas reconheço que foi um golo manhoso, daqueles que só aplaudimos quando são os nossos a marcar. Se a bola não tem tocado em Orban… Mas ele lá estava para nos desforrarmos da impossível defesa do rojões, ou Gulácsi...
De salientar que Rafael Silva, mais conhecido por Rafa, foi o jogador que aos 71 minutos Fernando Santos escolheu para entrar. E foi dele a assistência ao outro Raphael, este com o ph de quem nasceu em França, que rematou para o golo que Orban ajudou a marcar.
Depois, passados apenas três minutos, o mesmo senhor Rafael Alexandre Silva, conhecido por Rafa, foi travado em falta (a minha Bíblia diz que não há dúvida), dentro da área adversária por… Orban. Penálti e Ronaldo, o terceiro R da história, mandou o migas, ou Gulácsi, para um lado e a bola para o outro.
AS BELAS-ARTES
SE até agora já estava num andamento rápido e animado, ainda não era nada comparado com aquele sentimento que se têm quando se ouve a 9.ª de Mahler, ou a 9.ª de Beethoven, ou a 9.ª de Dvorak (há alguma propensão para os compositores se esmerarem nas nonas sinfonias). No entanto, se preferirem património, imaginem a primeira vez que veem Petra, ou o teto da Capela Sistina, ou a muralha da China, ou o coliseu de Roma; ou quando veem a Pietà ou o David (de Miguel Ângelo), ou o pensador de Rodin; ou a Mona Lisa, de Da Vinci, ou a noite com estrelas de Van Gogh, ou os fuzilamentos de Goya.
Enfim, imaginem algo belo, sublime, quase imaterial.
O terceiro golo de Portugal foi assim.
Há quem diga que foram 36 passes, há quem fale de 34 ou 33… enfim, em todas as grandes obras há controvérsia. A surdez de Beethoven, a angústia de Mahler pela morte da filha, a verdadeira identidade de Mona Lisa ou Gioconda, a lenda de Miguel Ângelo ter ordenado à estátua de David que falasse… Enfim, os aspetos laterais interessam os especialistas, mas pouco aqueles que, como eu e a maioria, apenas querem apreciar o belo. E o belo do terceiro golo de Portugal foi a sucessão, o envolvimento, a soberania total sobre o adversário e o toque que parece tão simples para o fundo das redes.
Não sei se já ninguém nos impede de irmos para a fase do mata-mata. Na verdade, a vitória sobre a Hungria, tendo aumentado as nossas hipóteses, não as assegurou. Se perdermos sábado com a Alemanha e quarta-feira com a França, podemos ainda ficar fora das contas. Por isso, temos de ir com espírito vencedor contra os germânicos e… talvez seja pedir demais, não sei, ganhar também aos franceses, o que conseguimos na final do último Europeu.
Sonhar não custa, e estou claramente a sonhar alto. No grupo da morte, três vitórias? Não sei… aos 75 minutos de jogo no embate de terça contra a Hungria, quem apostaria na vitória que tivemos? No golo que é uma obra de arte? Vale a pena ter esperança.
JOGAR FORA
Benfica — Rui Pereira demitiu-se de presidente da AG e o orçamento da equipa da Luz foi aprovado por margem escassa (mais sócios contra, mas mais votos a favor). Cheira a crise e eu, nada tendo a ver com isso, só espero que não tenham de passar pelo mesmo que os sportinguistas. Tenho Rui Pereira por homem sério, e não é um desmentido infeliz do clube que me faz duvidar da sua palavra.
Supertaça — Ainda há dias passei na autoestrada, mesmo ao lado do Estádio de Aveiro, e dá pena aquela desolação. A final da Supertaça, entre Sporting e Braga, será ali, mas aquele estádio, como o de Leiria, o do Algarve (e até futuramente o de Braga, caso o clube da cidade insista em voltar ao 1º de Maio), são a prova da nossa megalomania e do nosso desperdício. Espero que o Mundial de 2030, a que se candidataram Portugal e Espanha, não traga mais doses desse vício.