Vamos ficar bem

OPINIÃO17.03.202022:50

«VAMOS FICAR BEM». Esta é a frase que duas das minhas quatro filhas estão a pintar num cartaz para pendurar na varanda enquanto escrevo este texto - em casa, ao contrário do que é normal. Como a nossa vida - de todos - mudou tão brutalmente de um dia para o outro por causa deste estuporado corona vírus. Na segunda feira, pela primeira vez desde que estou n’ A BOLA TV - já lá vão oito anos - fui para o Bairro Alto num metropolitano quase vazio e saí na estação de um Chiado quase fantasma. O caminho a pé para a Travessa da Queimada foi feito em linha reta, sem o habitual slalom entre magotes de turistas que por esta altura já formigam no coração da capital. À hora do almoço o largo do cauteleiro (Trindade Coelho) estava quase vazio, despovoado, sem vida. Costumo sentar-me lá quinze ou vinte minutos a ler e desta vez não me apeteceu. Atravessei a rua para a infalível visita diária à Bizantina, uma das poucas livrarias alfarrabistas que resiste à pressão imobiliária no Chiado (onde costumo encontrar o Vítor Serpa). Assim que passei a porta, o meu amigo Carlos Bobone atirou lá de dentro: «entra que está vazio, mas olha que a partir de hoje só podem estar duas pessoas cá dentro ao mesmo tempo». Choque atrás de choque. A Lisboa que amo não é concebível sem praças, pracetas, becos, ruas e vielas atravancados de gente satisfeita como parecem ser todos os seus milhares de visitantes. Por isso o choque do vazio e do silêncio é duplamente maior numa cidade como esta: ladina, solar, sensual, sociável, vibrante, frequentada. Viva.


No enorme edifício de A BOLA, equipas mais reduzidas revezam-se em turnos mais reduzidos. O assunto é o mesmo dos últimos dias e a crescente falta de assunto desportivo, a preocupação óbvia. Vamos falar de quê nos próximos dois meses? Vai ser preciso muita imaginação, muita criatividade, muito jogo de cintura para dar à volta ao estupor do micro-organismo. Bem sei que não fica bem elogio em casa/causa própria, mas acho notável o acompanhamento que este jornal tem feito da crise desde que ela estoirou. Já agora, permitam-me acrescentar que tenho feito a Revista de Imprensa d’ A BOLA TV com base nos efeitos do Covid-19 no desporto (e não só) e olhem que por uma vez tenho a sensação que, ao contrário de outras desgraças mediáticas recentes, esta ataca e afeta da mesma maneira (quer dizer: sem filtros) todos os países do Mundo - grandes e pequenos, pobres e ricos, organizados e desorganizados, industrializados e do Terceiro Mundo, sofisticados e rudimentares. De uma forma ou de outra todos foram apanhados de surpresa e todos, sem exceção, subestimaram a dimensão do monstro. De pouco valeu à Itália ser um dos países mais evoluídos e sofisticados do planeta. Neste momento parece de rastos como um qualquer país africano (tirando a África do Sul) costuma ficar depois de sofrer um terramoto de grande magnitude, uma cheia assassina ou um furacão como o que desgraçou Moçambique no ano passado (o Idai). A minha esperança é que, pela especificidade da crise (não há culpados, apenas vítimas), a resposta à crise económica que inevitavelmente aí vem seja global - e mais solidária e generosa do que o costume.  


Como acontece em todas as grandes crises, a nossa perceção do Mundo - tão umbiguista, tão desprovida de escala - muda radicalmente de um dia para o outro. Enquanto estou a escrever isto olho de esguelha a progressão da besta em coronavírus real time counter. Assusta ver a tragédia ganhar corpo em direto - o número de infetados e de mortos à escala mundial a subir de minuto para minuto com uma infalibilidade mórbida -  como assustou ver em direto e ao vivo, há meia dúzia de anos, aquele gigantesco tsunami entrar pela costa do Japão adentro e a varrer estruturas de cimento, betão e aço como se penas de gaivota se tratassem. Como assustou ver em direto e ao vivo, há quase vinte anos, dois aviões pilotados por crápulas fanatizados entrarem pelas Torres Gémeas adentro, assassinando milhares de inocentes e ajoelhando instantaneamente o país mais poderoso do Mundo. O coronavírus é um tsunami que não pára de crescer cujo efeito tenebroso podemos acompanhar à distância de um click. E pouco podemos fazer para lhe escapar, a não ser lavar as mãos e fugir das outras pessoas. E mesmo assim podemos ser apanhados.


Em face do que está a acontecer (e do que está para vir), o desporto, nomeadamente a modalidade-raínha futebol, é violentamente remetido para o seu lugar: nada mais que um jogo, a despeito de ser o mais amado, praticado e seguido em todo o Mundo. Portanto, meus amigos: enquanto vivermos nesta incerteza de não sabermos o que temos pela frente, enquanto não soubermos a resposta aos «quantos» e «quandos» que nos atormentam o dia-a-dia, não vale a pena especularmos com o que quer que seja: é um exercício inútil. Muito menos perdermos tempo com questões ridiculamente menores (dada a gravidade do momento) como a de saber se pode haver um campeão só por ter terminado a primeira volta na frente (?!?); ou por ter ganho os dois jogos contra o rival direto (?!?); ou de que maneira a Liga dos Campeões vai apurar o vencedor deste ano. Desculpem, mas neste momento… who cares?


Voltando ao cartaz que agora está pendurado na nossa varanda (as miúdas fizeram um bom trabalho). Vamos ficar bem. Nós e milhares de famílias resistentes neste país de resistentes.


Mas não se esqueçam de lavar as mãos frequentemente e abundantemente. E de manter distâncias. Fujam das pessoas para proteger pessoas. Esta é a nossa responsabilidade. Aquilo que não podemos falhar. Por favor.    

PS - Forte abraço a Jorge Jesus, um homem que ama e sorve a vida com a sofreguidão de um adolescente. Se estiver infetado, não vai dar a mínima hipótese ao vírus: 3-0 é o mínimo. Força, mister !