Vá, recomecem lá o campeonato

OPINIÃO24.10.201804:00

1Confesso que nada me irrita mais do que estas longas paragens do campeonato, ainda por cima logo no início da época, com as equipas ainda a aquecerem os motores. Primeiro, porque fico com saudades de ver futebol a sério, depois porque fico sem assunto para escrever. E agora, com a entrada em cena de mais um operador nas transmissões televisivas que - entre outras coisas, roubou a Champions e o campeonato espanhol à Sport TV e que tem a estranha particularidade de ser quase impossível de aceder, de tal maneira é confusa, quer a sua instalação, quer a sua forma de pagamento (8.000 espectadores para o Benfica-Bayern da Liga dos campeões dizem tudo sobre isto, ao mesmo tempo que levantam todas as dúvidas sobre a viabilidade e a lógica financeira deste negócio de uma empresa que acaba também de comprar os direitos do próximo Euro-2020!). O facto é que, depois de uns dez dias em que nos limitámos a dois jogos da Selecção - um para uma competição cujo nome nem recordo e cuja finalidade não alcancei ainda, a não ser a de tornar mais rica a nossa já rica Federação e as demais, seguido  de mais um jogo particular entre as terceiras linhas de Portugal e as segundas linhas da Escócia (coisa palpitante!) - seguiu-se um outro fim-de-semana com a primeira eliminatória da Taça em que se estrearam os primodivisionários. Sendo que estes iam de visita a clubes de segunda, terceira divisão ou distritais, também não percebo que mal, que imenso desgaste, haveria em pô-los todos a jogar a meio da semana, como sucede em quase todos os países europeus. Afinal, para que têm eles plantéis de 30 jogadores ou mais? Um jogo contra o Sertanense, o Vila Real ou o Loures não significa para Benfica, Porto ou Sporting o mesmo que um treino de conjunto a meio da semana?
2    Assim sendo, pois, não havendo presente de que tratar, falemos do passado. Quanto ao passado, foi bom ver recordar aqui, na Bola, os célebres jogos entre o Ajax de Johan Cruyff e o Benfica de Eusébio, sobretudo os primeiros, de 1968 - esse ano de todos os perigos. O ano do Maio de 68 em Paris, do apogeu da Guerra do Vietname, da invasão de Praga pelos tanques soviéticos, da morte de Marilyn Monroe. Muito embora eu ainda fosse um miúdo, lembro-me muito bem dessa eliminatória para a então chamada Taça dos Campeões Europeus, decidida em três jogos, com um desempate em Paris. Éramos todos um pouco benfiquistas, então - mesmo eu, um portista doentio. Porque o Benfica era a espinha dorsal - aliás, a cabeça, tronco e membros da Selecção, que apenas dois anos antes ficara em terceiro lugar no Mundial de Inglaterra e em que só o guarda-redes não vinha da Luz. Depois, porque o Benfica era o único clube verdadeiramente internacional de Portugal e o único que nos prestigiava além fronteiras, com dois títulos de campeão europeu - os seus dois títulos internacionais, que jamais acrescentaria (embora agora a BTV ridiculamente lhe queira acrescentar  um outro que ninguém mais lhe reconhece: uma tal de ‘Taça Latina’).  E finalmente, claro, porque nele jogava, com a mítica camisola número 10, o cidadão Eusébio da Silva Ferreira, que depois até poderia vir a jogar no Cosmos ou no Beira-Mar, que para sempre seria de nós todos.
Mas esses três jogos entre Benfica e Ajax não há como esquecê-los para quem os viveu -muito embora eu, desgraçadamente, já não consiga lembrar-me se os segui na televisão ou apenas por relato na rádio. O primeiro jogo, o de Amsterdam, é inesquecível, pois talvez tenha sido a primeira vez que uma equipa portuguesa jogou na neve (não sei se antes o mesmo Benfica, sob o comando de Béla Guttmann, não terá jogado também na neve, em Nuremberga). E, jogando na neve, o Benfica viria a ganhar, tal como anos depois, também jogando sobre um manto de neve em Tóquio, o FC Porto viria a ganhar para o futebol português o primeiro dos seus dois títulos de campeão mundial de clubes. É sem dúvida extraordinário: deem-nos neve, que nós damos futebol. Não sei se não deveríamos mandar o Sporting da Covilhã aos Jogos Olímpicos de Inverno...
O segundo e terceiro jogos, em Lisboa e Paris, foram também inesquecíveis, pois que assinalaram o aparecimento no firmamento de um astro novo, que, para mim, talvez tenha sido o melhor jogador de futebol de todos os tempos: Johan Cruyff, justamente. Regressado de Amsterdam com uma vitória impensável de 3-1 obtida num ringue de neve, ninguém pensaria que o Benfica deixasse escapar tal vantagem em Lisboa. Mas Cruyff, sozinho, deu cabo de todos os prognósticos e destroçou o Benfica, com o Ajax a devolver o 3-1 na Luz e depois a confirmá-lo com um claro 3-0 no desempate em Paris. E daí partiram os holandeses do Ajax para uma mais do que merecida conquista da Europa do Futebol, feita até com uma revolucionária forma de encher o campo que ficou baptizada como o «futebol total» - em que, por exemplo, se viam pela primeira vez os laterais a funcionar como extremos , os avançados a recuarem ao meio-campo para pegarem no jogo (a grande especialidade de Cruyff) e os médios a aparecerem na área como finalizadores. Cruyff destronava Eusébio na galeria dos imortais - não o fazendo esquecer, apenas lhe sucedendo pela ordem natural das coisas. Nos anos seguintes, aconteceu-me muitas vezes, por circunstâncias da minha vida pessoal, passar fins-de-semana junto à raia alentejana, onde se tinha acesso à televisão espanhola, quando Cruyff jogava no Barcelona - de que viria a ser um símbolo e um mito, até hoje só igualado por Leonel Messi. E eu, claro, não perdia uma oportunidade de vê-lo jogar pelo Barça e julgo até que fiquei adepto dos catalães graças a ele. Foi numa televisãozinha de uma tasca de Monsaraz que vi Johan Cruyff marcar pelo Barcelona um dos mais extraordinários golos que me foi dado ver na minha vida, indo buscar a bola ao guarda-redes à saída da área e, em tabelas sucessivas com os companheiros, alternadas com fintas sobre os adversários, mas sempre em progressão e sempre e pensar adiante, acabou isolado na área adversária para fuzilar as redes. Como Cruyff e no seu estilo, só vi jogar justamente Leo Messi - e por isso hesito em dizer qual dois será, do meu ponto de vista, o melhor jogador de todos os tempos. Eu divido os grandes jogadores, os verdadeiramente únicos e inesquecíveis, em duas categorias: os génios da competição e os génios da intuição. De entre os competitivos, os melhores de sempre, para mim, foram Pélé, Eusébio e Cristiano Ronaldo. Ninguém rematou como eles, ninguém finalizou como eles, ninguém correu como eles, ninguém terá sido um atleta tão perfeito como eles (ou, pelo menos, reunindo tantas destas características simultaneamente) e ninguém terá tido um talento tão instintivo para o futebol. Já os intuitivos - de que, entre os melhores de sempre, escolho Cruyff, Maradona e Messi - têm um talento inato, mas não instintivo e sim construído. Não jogam de rompante, mas de pensamento. Não olham apenas em frente, mas a toda a volta, não precisam de ser atletas (até podem ter 1,67m como Messi ou Maradona), porque o seu futebol não necessita que eles corram mas que façam correr a bola, os companheiros e o jogo. São os mestres da técnica e da inteligência, não da força ou do sprint. Cruyff era destes, porventura o maior de sempre.

3Ah, e Moscovo, logo à noite! De Moscovo, só tenho boas lembranças. E o FC Porto também. Sigam as boas memórias.