Uma última coisa sobre 2020
ESTE é o último Bairro Alto Fora de Horas que escrevo este ano e andava à procura de uma ideia, algo que me ajudasse a sintetizar o absurdo de 2020. Acho que consegui, não por uma ideia minha, afinal, apenas pela justaposição de duas notícias, ambas tendo Kobe Bryant como protagonista.
A primeira foi em janeiro , a do falecimento do basquetebolista, num desastre de helicóptero, seguramente abraçado à filha no momento da tragédia, horror que só de olhos fechados se imagina. A segunda foi em novembro, uma lista da Forbes que dava conta da entrada bem avaliada de Kobe na lista de mortos que mais dinheiro ganharam em 2020, cotando-se especificamente como o desportista morto mais valioso.
Se pode haver coisa absurda na vida de um homem só pode ser esta.
É a velha ideia da arte que vale mais sem o artista, neste caso com a transfiguração dos sentidos: é o próprio artista que vale mais sem a arte.
Temos este fascínio pelos mortos que nos dão sinais, nos contam coisas. A literatura tem obras-primas assim, bastando recordar dois exemplos maiores de narradores mortos, como em As memórias póstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis, ou em As I Lay Dying, de William Faulkner, para que percebamos como depois há tantas coisas menores que pegam no estilo, o adaptam, de certa forma o vulgarizam, em livros ou filmes.
Livros de narradores mortos no desporto eu não conheço, contudo aqui deixo esta sugestão para quem quiser trabalhar num: o que teria a dizer um Kobe Bryant que tivesse morrido no desespero de um abraço à filha para se tornar num morto mais valioso. A desgraçada ironia de ter morrido com um tesouro nos braços é do mais 2020 que pode haver. Feliz 2021, malta.