Um onze titular

OPINIÃO19.07.202206:30

Talvez não exista um consenso sobre o que é exatamente a mística benfiquista, mas toda a gente reconhece quando a vê

É sabido que o plantel ainda não está fechado e que muito daquilo que pode acontecer nas próximas semanas determinará o sucesso ou o insucesso de uma espécie de ano zero num clube em que esse conceito não é tolerado. É também verdade que a equipa ainda não teve testes suficientes, ou suficientemente exigentes, para que consigamos tirar conclusões definitivas. Mas, evitando afirmações excessivamente categóricas, parece-me que estamos a assistir a qualquer coisa diferente nesta equipa. Os novos jogadores prometem acrescentar muito ao onze, mas não me parece que se trate apenas de uma questão de reforços, até porque continuam a faltar peças para um onze titular em linha com as possibilidades financeiras do clube, e à altura das suas ambições desportivas. A diferença está nas poucas semanas de trabalho conduzido por Roger Schmidt e pela sua equipa técnica.

Aconteça o que acontecer, já tivemos um cheirinho daquilo que é habitualmente o melhor das equipas de Schmidt: uma dimensão física como há muito não se via por aqui, níveis de intensidade elevados e constantes ao longo dos 90 minutos, e novos executantes que parecem ter chegado para fazer a diferença, obedecendo ao coletivo sem anularem as suas capacidades individuais. Ah, e alguns executantes antigos que parecem novos. Em suma, são poucas semanas e apenas um par de jogos, mas qualquer receio de que as ideias não passassem facilmente cai por terra quando se vê tantos sinais de mudança em tão pouco tempo. Essa transformação encarna numa ideia de jogo ambiciosa e entusiasmante, que acontece no relvado à vista de todos sem que o treinador tenha necessidade de a explicar demoradamente (outra mudança refrescante). Não me lembro de quase nada dito por Roger Schmidt desde que chegou, e ainda bem. Aquilo que vi até agora fala a tal linguagem universal e essa os adeptos entendem lindamente. Ainda que tenha sido breve e apenas em jogos de preparação, voltámos a jogar à bola. Não tenho a mais pequena dúvida de que a esmagadora maioria dos benfiquistas viu isso. É um começo.

É claro que não há veredictos em julho e esta análise corre o risco de ser vista como prematura. Está tudo por confirmar nesta equipa, e quase tudo poderá ainda correr mal ou desviar-nos dos objetivos, mas Roger Schmidt conseguiu aquilo que era mais importante à chegada: galvanizar sem grandes salamaleques, garantindo que a fome dos adeptos à entrada para uma nova época encontra igual medida nos atletas, e que, na maioria das ocasiões, bola que sai redondinha dos pés de um jogador chega redondinha aos pés do colega de equipa, quase sempre mais perto da baliza adversária. E isso parece ser interpretado devidamente pelos jogadores que partem na frente e pelos que espreitam uma oportunidade. A qualidade e a vontade estão lá. Espero que desses princípios possa emergir uma equipa para esta época em que as caras vão mudar várias vezes, mas as qualidades centrais devem permanecer. Aqui fica o meu onze titular.
 

Aquilo que o Benfica fez no Algarve chega para entusiasmar os adeptos 


IMPACTO 

É uma característica dominante das melhores organizações e dos coletivos mais fortes. Talento e competência são determinantes se contribuírem de forma visível para a prossecução dos objetivos. O sucesso deve ser medido pelo impacto que cada um é capaz de produzir em termos individuais e em termos coletivos. Parece uma ideia simples, banal até, até se pensar quantas vezes já contratámos jogadores que nada acrescentaram porque não lhes foi incutida a mentalidade certa e porque não foram enquadrados de forma adequada no coletivo.  
 

HUMILDADE

Uma das poucas coisas que guardei da apresentação de Roger Schmidt foi o reconhecimento da valia dos adversários, nomeadamente Futebol Clube do Porto e Sporting, quando alguém lhe perguntou pelas arbitragens. É importante travar os combates de um futebol algo putrefacto, mas isso deve ser feito nas arenas adequadas. O Benfica parte para esta época desportiva em terceiro lugar, e é a partir daí que deve começar a sua escalada, tanto na relação de poder com os adversários quanto na relação com os adeptos, com os quais a única forma de reconciliação absoluta é a conquista de títulos. Qualquer espécie de soberba que contrarie este objetivo será penalizada, primeiro pelos adversários e depois pelos adeptos. 
 

AGRESSIVIDADE

Há um momento de jogo muito interessante que parece definir as equipas de Schmidt. Acontece quando a bola está no guarda-redes ou num dos defesas adversários, e exige aos jogadores do Benfica uma perseguição faminta a todo e qualquer homem com bola ou em condições de a receber. Quando bem executado, permite intimidar o adversário e provocar mais facilmente o seu erro. Não sei até que ponto este plantel será capaz de fazer isto bem ao longo de toda a época, mas os primeiros sinais são auspiciosos - e não há adepto que não goste de ver os seus carregarem desta forma sobre os adversários.  


MATURIDADE 

A inteligência emocional é outro atributo que muitas vezes tem faltado aos plantéis do Benfica. Nem sempre soubemos gerir vantagens, nem sempre soubemos usar a agressividade tática ou física para controlar os jogos, e nem sempre soubemos reagir aos momentos do jogo condicionados pelos atores secundários (como os muitos erros de arbitragem). Que esta época consigamos melhorar em todos estes capítulos e controlar melhor os aspectos emocionais de cada jogo disputado.  
 

JUVENTUDE 

Mais do que uma alusão à idade dos jogadores, a juventude a que me refiro deve ser patenteada no estilo de jogo. O futebol de Schmidt tem princípios de organização, mas tem também algo de despenteado. Contém uma certa irreverência que, comportando riscos, deve ser celebrada. Diria que, num certo sentido, precisamos todos de nos sentir jovens novamente, jogadores e adeptos, depois dos últimos anos de futebol-andebol a que fomos forçados. 
 

AMBIÇÃO 

Não há anos zero no Benfica. Esta equipa tem de trabalhar para conquistar todos os títulos que vai disputar esta época, e tem que ter um plantel apetrechado e a mentalidade competitiva para lá chegar. Esses objetivos devem incluir a Liga dos Campeões (é para mim inconcebível que não cheguemos à fase de grupos). Interessa-me pouco se é improvável ou se há candidatos mais fortes à vitória nesta prova. uma boa mentalidade, aliada a talento e ideias fortes, pode ultrapassar os mais fortes, mesmo quando poucos o esperam. Ganhar ou morrer a tentar.  
 

SOLIDARIEDADE 

Uma entrevista recente do Darwin chamou-me a atenção e, espero, da equipa técnica e dos dirigentes do futebol profissional. O uruguaio diz que faltou algum companheirismo na época passada, que os jogadores passavam pouco tempo juntos. No fundo, diz que faltou amizade. Onde falta amizade falta muitas vezes solidariedade. Parece-me um daqueles problemas de cultura organizacional que se torna evidente no relvado, geralmente de forma fatal para as aspirações desportivas. É fundamental que esta época seja um virar de página também nesse capítulo. 
 

PRAGMATISMO 

Menos conversa, mais futebol. A equipa deve entrar em campo com um propósito claro. Por incrível que pareça, muitos onzes do Benfica nas últimas épocas pareceram desorientados do primeiro ao último minuto, talvez porque as coordenadas do destino não eram sempre claras ou, pior ainda, porque ninguém sabia o caminho para lá chegar. Que saibamos entrar sempre em campo desprovidos de dúvidas existenciais. A identidade do Benfica é ganhar.
 

VERSATILIDADE 

Costuma dizer-se que nenhum plano de batalha sobrevive ao primeiro contacto com o inimigo, e isso será tanto mais válido quanto melhor for a compreensão das ideias de Schmidt. O talento dos adversários irá colocar à prova toda a teoria que o alemão tem colocado em prática noutros futebóis, mas diria que nada será mais exigente para o novo treinador do Benfica (a nível interno) do que o futebol do autocarro estacionado em frente à baliza, do anti-jogo, da manha, da hostilidade, ou da arbitragem pouco competente. Teremos de ser engenhosos, e muito bons, para ultrapassar tudo isto.
 

VERTIGEM

A identidade das equipas de Schmidt joga-se muito na intensidade e verticalidade com que todos abordam o jogo. Há, por oposição às ideias de jogo preconizadas pelos treinadores recentes do Benfica e no futebol português em geral, uma certa loucura nisto, e não é nada evidente para mim que vá correr sempre bem. Mas gosto de sentir que há esse apetite voraz por chegar à baliza adversária. Acho que os adeptos estão capazes de se habituar a essa boa sensação. 


MÍSTICA 

Se os outros 10 jogadores neste onze aparecerem para trabalhar, a mística estará assegurada. É um eterno debate para o qual só existe uma solução. Talvez não exista um consenso sobre o que é exatamente a mística benfiquista, mas toda a gente reconhece quando a vê. Para mim passa por acreditar, em cada instante desta época desportiva, que os jogadores e a equipa técnica querem isto tanto como nós. Só assim os Benfiquistas serão devidamente representados.