Um Benfica (e não só) apenas para consumo nacional?

OPINIÃO08.10.201904:00

1 Não foi apenas o jogo em São Petersburgo. Têm sido quase todos os jogos europeus, de há umas épocas a esta parte. A regra - evidentemente com excepções para a confirmar - tem sido a mutação do Benfica europeu num conjunto de bons rapazes, que não conseguem disfarçar a dificuldade de transição de um joguinho por cá, contra equipas menores, para um jogo por lá, contra equipas europeias. Muito me custa constatar a insuficiência e a penosidade com que, há já tanto tempo, o Benfica se apresenta na Liga dos Campeões. E se é certo que, contra clubes de outra galáxia, não admira que tal aconteça, contra clubes mais acessíveis, senão mesmo sofríveis, não é entendível que assim seja. Chame-se o opositor o Basileia da Suíça, o Zenit ou o CSKA da Rússia, ou outra qualquer equipa mediana. Dói-me a comparação com outras equipas também medianas, que conseguem medir forças com os poderosos. Só nesta jornada europeia, vimos os belgas do Club Brugge a empatar em Madrid, o Salzburgo a perder por 3-4 em Liverpool, depois de notável recuperação, e o Ajax a dar três secos em Valência.

A verdade é que o Benfica joga com medos, comete erros de amadorismo, perde sistematicamente confrontos mais físicos e robustos, erra passes com uma frequência inusitada, oferece golos de toda a espécie (ainda agora foram três, sendo o facilitado por Fejsa resultante de se jogar mastigadamente em zona defensiva de risco). De repente, o doméstico gigante Benfica entra nos jogos da Champions metamorfoseado em anão Benfica europeu. Os jogadores até podem ser os mesmos, o que é diferente é o ritmo, a intensidade, a luta nos lances divididos, a verticalidade e a eficácia, para o que - por falta de hábito no campeonato doméstico e outras coisas - a equipa não tem antídoto. Por cá, as pequenas equipas tremem diante do Benfica. Lá fora, a música é outra: é o Benfica a tremer diante de qualquer apenas razoável clube, denotando uma evidente falta de estatuto ou arcaboiço. Aliás, vimos nesta jornada Benfica e Porto, com notórias dificuldades defensivas, que cá só sentem nos poucos jogos a doer entre eles e pouco mais, sendo que o normal é um passeio pelo nosso campeonato sem serem postos à prova. O que, em regra, mais salta à vista nas equipas portuguesas são os deficitários grau de intensidade e nível de concentração, mesmo contra equipas de campeonatos não longe do estatuto do nosso.

2 O exagero no futebol é o que melhor embrulha a paixão. O exagero vive de sinais exteriores. Expressionista, precisa de interlocutor que o aproprie. E que, de exagero em exagero, o propague. Até se anular por excesso. Como o peixe que morre pela boca, a exageração morre por apoplexia. Constrói a sua própria morte. Mas deixa as suas próprias cinzas.

Proclama-se alto e bom som que o título europeu vai ser uma realidade já não longínqua. Como se tais palavras passassem a fronteira e se ouvissem, ao menos em Badajoz. Infelizmente, proclamar um Benfica triunfal na Europa, é, por agora, um desvario onírico, tal qual seria o de um Vitória ou Marítimo anunciarem a próxima conquista do campeonato nacional.

Sejamos realistas. Verdadeiramente, o exagero esvazia-se em nós, porque a nossa medida fora dos outros sempre se reduz à normalidade, que é o que resta depois de extraída a exageração. Dispensemos, pois, a inflação métrica contida no exagero.

Sejamos atrevidos e ousados. Mas com uma dose certa e prudentemente calibrada entre a racionalidade da percepção e a emocionalidade da sensação. É bom almejar objectivos que nos desassosseguem positivamente, que nos façam olhar para a frente com ganas, que sejam um incentivo para ultrapassar temores, obstáculos, tradições, estatísticas. Mas que não se confundam com utopias que, por tão irrealizáveis, se transformam em desnecessárias frustrações anímicas.

Sejamos pragmáticos. Isto não vai lá só com a fábrica do Seixal, por melhores resultados que tenha (e tem tido mesmo). E também não vai lá com o excesso de mercantilismo de o Benfica ser um óptimo aviário, mas com os ovos ainda quentinhos a desaparecer em fulminante pouco tempo.

A aposta estratégica na formação é de enaltecer e aplaudir. Mas não podemos dela fazer a poção mágica asterixiana. Entre a excelente capitalização da formação num ano e a sucessiva descapitalização/venda nos imediatos anos seguintes, correm-se riscos não despiciendos. Foi, assim, que subestimámos o necessário plantel para o penta, quando confiámos demasiado na boa inércia.

Reconheço que o Benfica tem tido um assinalável encaixe com os seus jogadores, que muito terão contribuído para um balanço a caminho de um desejável equilíbrio e indutor de sustentação no futuro, ultrapassada a terrível fase em que, no clube, não havia dinheiro sequer para fazer cantar um cego. Mas, nostálgico que sou, acho que, por vezes, não se podendo evitar a saída de grandes jogadores, talvez se devesse fazer mais qualquer coisa para alongar a sua permanência. Vejamos alguns exemplos, desde a temporada 2010/11(entre parêntesis, os anos na equipa principal):  Di Maria (2 anos), Witsel (1 ano), Ramires (1 ano), Nolito (1 ano), Matic (2 anos), Enzo Pérez (2 anos), Oblak (meio ano), Lindelof  (1 ano), Mitroglou (1 ano), Jovic (1 ano, não jogando), Jiménez (2 anos), Ederson (ano e meio), Talisca (2 anos). E quanto a jovens saídos da formação, entre outros, tivemos Nélson Semedo (2 anos), Gonçalo Guedes (1 ano), André Gomes (2 anos), João Cancelo e Bernardo Silva (quase não jogando na equipa principal) e João Félix (meio ano).

3 Como sócio benfiquista, avalio esta década directiva muito positivamente, jamais diminuindo a importância da reconquista da hegemonia nacional traduzida em cinco campeonatos nas últimas seis temporadas. Mas, com o mesmo benfiquismo, não me isento de, séria e ponderadamente, exprimir tanto a convergência como a diferença de pontos de vista. Neste contexto, há um ponto que deveria merecer uma reponderação estratégica, qual seja a de encontrar um mais cadenciado ritmo do poliedro do futuro. As faces deste ecléctico poliedro (entre outras) são os resultados desportivos, a sustentabilidade financeira, a valorização patrimonial, a formação de homens e atletas e a qualificação permanente de uma estrutura profissional eficiente. Ora, tal como num poliedro, todas as faces contam e nenhuma se submete a qualquer outra, pois só assim o resultado global é melhor e mais permanente, ainda que, às vezes, mais demorado nos efeitos. Domingos Soares de Oliveira disse há pouco tempo que «a intenção é reforçar sempre a nossa capacidade competitiva, sem comprometer o equilíbrio».  Não posso estar mais de acordo. Mas, escolher é uma opção que implica renúncias. Quero dizer: se se quer ter uma equipa à prova da Europa tem de se tentar agarrar durante mais tempo os talentos (é até curioso que na classificação do montante das vendas de passes o Benfica está sempre no top, e, ao invés, perde sucessivamente nos jogos no campo). Tenho plena consciência de quão difícil isto é num mercado desnivelado e no eldorado de oportunidades para jovens aturdidos pelo dinheiro fácil. Não estou - repito - a desmerecer óptimos negócios que se fizeram, mesmo que a contragosto directivo. Mas, por vezes, fica-me a ideia (justa ou injustamente) que se põe o mercado à frente do objectivo de construir e sobretudo estabilizar (sublinho: estabilizar) uma equipa à altura dos pergaminhos europeus do clube. O mesmo se pode questionar quanto ao crescimento tão intensivo e acelerado do Seixal 5 estrelas, no que ao desenvolvimento logístico e de infra-estruturas diz respeito. Ou a um Estádio da Luz que, secundarizando direitos e a genuinidade do apoio dos seus indefectíveis sócios, faz do modelo corporate da sua lotação um ganho financeiro acrescido, com ilustres visitantes (muitos não benfiquistas) que por lá passam para beber uns copos e dar umas garfadas nos intervalos. Ou, agora, essa patética questão da mudança do emblema do Sport Lisboa e Benfica, para o adaptar aos novos desafios de um modo global, como exigência para a dita «internacionalização da marca»…

4 Uma última nota para Bruno Lage, que, subitamente, é alvo de críticas, sobretudo de quem tem memória curta, ou de quem vai na onda de certas conclusões excitadas dos sempre excitados canais tabloidizados. Bem sei que a apreciação de um treinador é semelhante ao registo num sismógrafo, uns tempos em estado de graça plena, outros tempos em plena desgraça, e quão eloquente é o ser-se treinador-às-segundas-feiras. Continuo a pensar que Lage é o treinador certo para o Benfica. Creio que qualquer outra alternativa possível para ocupar o seu lugar não teria vencimento. É um homem inteligente, sério, educado, motivador, sensato, bom gestor de meios. Toma, em regra, boas decisões e assume riscos, não se escondendo na omissão, no deixa andar, no passar entre os pingos da chuva. Comete erros? Quem não os comete? Para mim, o saldo continua a ser muito positivo e merece, sem reservas, a minha gratidão.