Três mulheres históricas
A verdade é que o futebol se vai comprometendo, cada vez mais, com as grandes causas da civilização moderna. É perigoso, mas inevitável
Ofutebol tem fama e proveito de ser conservador. E se nos últimos anos, sobretudo com a aceitação do uso tecnológico nas decisões de arbitragem, se constatam sinais evidentes de mudança, isso tem muito mais a ver com a aproximação da indústria do futebol às regras de liberalização do mercado do que à convicção de que a mudança seja uma necessidade imposta pela natural evolução dos tempos. Daí que a recente decisão da FIFA em escolher três mulheres para integrar o quadro dos 36 árbitros principais no Campeonato do Mundo do Catar tenha sido recebida pela tribo da bola com uma contida reserva, especialmente pela controvérsia que qualquer crítica mais direta iria implicar na discussão mais universal da luta pela igualdade de género.
Há, no entanto, factos que podem ajudar ao argumento meramente objetivo da competência. O mais importante é que se tratam de exceções assumidas pela FIFA e que encontrou, de forma arbitrária, uma quota feminina para garantir uma novidade histórica no futebol, prescindindo, nestes casos especiais, de uma escolha apenas feita numa lista de árbitros de elite. Outro argumento válido é de que, por muito competentes que sejam as três árbitras, não têm a mesma experiência que os árbitros internacionais de topo possuem em jogos de alta intensidade. Contra estes argumentos está o facto, também indiscutível, de se saber que muitos dos árbitros escolhidos fora da confederação europeia também não estão habituados a dirigir jogos de alta rotação competitiva e, o mais importante de todos, o comprometimento do futebol, que muitos consideram ter sido sequestrado pelo materialismo financeiro dos novos tempos, com valores que façam sobreviver sinais de envolvimento com causas e com movimentos internacionais de solidariedade social.
Salima Mukansanga, 35 anos, nascida no Ruanda, Stéphanie Frappart, francesa de 38 anos, e Yoshimi Yamashita, japonesa, nascida em Tóquio há 36 anos, ganharam o direito a tornarem-se históricas, não apenas no futebol, mas na civilização universal.
Independentemente do que alguns adeptos de futebol mais resistentes à mudança dos tempos possam pensar, a integração destas três mulheres no quadro de árbitros principais de um Mundial que será jogado num país em que legitimamente se questionam direitos humanos, entre eles o da igualdade de género, torna-se, antes de ser uma escolha de caráter técnico, uma decisão política a juntar a outras, como a da exclusão da seleção russa, o que vai comprometendo cada vez mais o futebol com a realidade social e política do mundo e com as convicções das chamadas sociedades livres.
Há quem veja neste não distanciamento do futebol uma perigosa falta de autonomia e até de independência. Percebe-se que não é difícil argumentar nesse sentido, mas o futebol, e as suas principais instituições, sabem bem que não podem ter o sol na eira e a chuva no nabal e se se conduzem pelas regras, puras e duras, da liberalização cega do mercado, até em detrimento do interesse e da justiça desportiva, não podem evitar um envolvimento cada vez mais comprometido com estratégias assentes numa natureza geopolítica e com causas que abrangem os mais amplos movimentos sociais.
É, pois, um outro futebol que desponta e que vai cada vez mais surpreendendo os velhos adeptos da bandeira às costas e do amor ao emblema na camisola, mas a verdade é que nem o futebol, mesmo com toda a sua força e carisma, consegue resistir ao tempo e às vontades, porque, como tão bem nos lembrava Camões, «todo o mundo é composto de mudança».
CONCEIÇÃO E A POLÍCIA
Sérgio Conceição garantia que ninguém o poderia envolver nos lamentáveis incidentes que se verificaram na garagem do Dragão, após o FC Porto-Sporting. O argumento era indestrutível: «Não tinha lá estado.» Mas o relatório da polícia desmente Conceição e dá o treinador do FC Porto como sendo um dos protagonistas de algumas daquelas cenas. Conceição eleva a fasquia e diz que a polícia está a mentir. Aí, o caso torna-se, evidentemente, mais grave e até insustentável. Não pode estar em causa a credibilidade da polícia, pois não?
MANIPULAÇÕES DE UMA GUERRA
As televisões transmitem horas dos horrores do campeonato da guerra. De todo o lado chegam comentadores encartados. Falam-nos apaixonadamente dos golos que os ucranianos marcam e das faltas imperdoáveis que os russos cometem. É difícil a qualquer cidadão bem intencionado conhecer, verdadeiramente, o estado da guerra. Do lado ocidental, a visão é partidária. Do lado russo, a visão não nos permite ver além do nariz de Putin. A única certeza é a do sofrimento de um povo e de dois exércitos de combatentes descartáveis.