Três histórias
Massa de letras (sopa)
1 - O senhor Calvino, com um guardanapo, limpava, cuidadoso, os restos de letras que ainda permaneciam à volta da sua boca, mas por vezes uma ou outra escapava. Depois daquele almoço, por exemplo, um A ali ficara, teimoso, no lado direito do queixo.
Calvino, olhando-se agora ao espelho, não pôde deixar de admirar a capacidade de resistência daquela letra aos anteriores enérgicos movimentos do seu guardanapo, e observava então aquele A como quem observa um alpinista agarrando-se desesperadamente para não cair. De facto, aquela letra parecia resistir, e como que pedia - Calvino pensou mesmo nessa palavra - compaixão.
Calvino naquele dia decidiu fechar os olhos. Algo o comovera em toda aquela cena.
E assim saiu à rua com a consciência plena de que tinha um A, um pequeno A, no lado direito do queixo.
Várias pessoas cravavam os olhos naquela irrupção alfabética, e a Calvino não passava despercebido o modo como alguns desconhecidos se controlavam, no último momento, para não lhe dizerem: desculpe, mas o senhor tem um A a cair do queixo! Mas ninguém teve coragem para tal.
Por ele nada faria para apressar esse acontecimento: quando as circunstâncias o determinassem o A cairia do seu queixo. Calvino decidira deixá-lo, pois, à sorte e ao natural atrito do mundo.
O animal de Calvino
2 - De manhã, Calvino dirigia-se à cozinha para dar de comer ao Poema. O bicho devorava tudo: nenhum alimento era desagradável ou esquisito - e tudo para ele parecia ser alimento.
Ao fim do dia, depois de terminadas as tarefas urgentes, o senhor Calvino acariciava-lhe o pêlo com a delicadeza e a hábil distracção aparente dos tocadores de harpa. Naqueles instantes, o universo abrandava as rotações ganhando a lentidão inteligente dos pequenos felinos.
Dar banho ao Poema não era fácil; ele como que resistia à limpeza, exigindo de modo saltitante uma liberdade impúdica que só a sujidade permite. Mas bem pior ainda era dar ao bicho uma injecção. Era a única altura em que as garras eram dirigidas a Calvino. Aquele animal preferia adoecer, a ser medicado.
Um dia o animal caiu da janela do 2.º andar, e morreu.
Calvino, no dia seguinte, adoptou outro.
E deu-lhe o mesmo nome.
A janela
3 - Uma das janelas de Calvino, a com melhor vista para a rua, era tapada por duas cortinas que, no meio, quando se juntavam, podiam ser abotoadas. Uma das cortinas, a do lado direito, tinha botões e a outra, as respectivas casas.
Calvino, para espreitar por essa janela, tinha primeiro de desabotoar os sete botões, um a um. Depois sim, afastava com as mãos as cortinas e podia olhar, observar o mundo. No fim, depois de ver, puxava as cortinas para a frente da janela, e fechava cada um dos botões. Era uma janela de abotoar.
Quando de manhã abria a janela, desabotoando, com lentidão, os botões, sentia nos gestos a intensidade erótica de quem despe, com delicadeza, mas também com ansiedade, a camisa da amada.
Olhava depois da janela de uma outra forma. Como se o mundo não fosse uma coisa disponível a qualquer momento, mas sim algo que exigia dele, e dos seus dedos, um conjunto de gestos, minuciosos.
Daquela janela o mundo não era igual.