Tratamentos desiguais

OPINIÃO21.04.202004:00

Hoje pouco vou falar de bola. Ela descansa de mim e eu descanso dela. Enquanto não há certezas sobre como e quando vai ser o recomeço desportivo, escrevo hoje sobre dois pontos político-sociais: a coerência (ou falta dela) e a velhice.  

1 O estado de emergência prossegue até ao início de Maio, com ligeiras alterações na possibilidade do reinício de alguma economia de proximidade. Passou-se o período pascal com absoluto respeito pelas normas de confinamento. Pudemos ver o Papa Francisco nas cerimónias religiosas e na proclamação urbi et orbe numa, tão insólita como espiritualmente rica, Praça de São Pedro completamente vazia sem a presença física de fiéis de todo o mundo. Mesmo com as igrejas fechadas, a celebração pascal pôde ser vivida e consagrada em casa por quem assim desejou.

Insolitamente, perante um contexto legal de confinamento de todos, a Assembleia da República decidiu manter a cerimónia do 25 de Abril, ainda que com menos presenças. Estranha-se esta atitude, pois, nas actuais condições, se compreenderia melhor a anulação deste cerimonial. O mesmo Parlamento, que aprovou as regras impositivas e restritíssimas do estado de emergência, decide em causa própria e manda às malvas o que lá foi aprovado. E, sinceramente,  custa-me ver o Presidente da República a dar cobertura a esta situação. No feriado do 25 de Abril, continuamos todos - e bem - com enormes limitações de circulação e de acesso a bens essenciais e confinados nas casas, sem podermos ver pais, filhos, avós e netos. Também as famílias que acompanham os seus entes mortos continuam reduzidas ao mínimo no momento mais doloroso da despedida. Além do mais, esta decisão é um insensível, insensato e ofensivo desrespeito pelos médicos, enfermeiros, outros profissionais de saúde, agentes de segurança e bombeiros. Absolutamente inconcebível foi o que a ministra da Saúde (repito, da Saúde) -  quando questionada na conferência deste domingo sobre a decisão da AR -  respondeu sobranceiramente, dizendo que «não prescindiremos de fazer o 25 de Abril»! Não se trata de empobrecer o significado e o  indiscutível simbolismo daquele dia, do qual, porém, algumas forças políticas e políticos se acham donos vitalícios. Mas, em tempo de restrições como nunca tivemos, não pode haver dois pesos e duas medidas. A pedagogia do exemplo e o imperativo da coerência devem começar nas mais elevadas funções públicas. Só assim se edifica a verdadeira autoridade democrática. Nestas alturas, pergunto-me o que diriam os decisores destes cerimoniais, se também tivesse havido excepções religiosas na Páscoa. Teria caído o Carmo e a Trindade.

2 De um modo predominantemente subliminar ou implícito e pelo mundo fora, há crescentes afloramentos eticamente discriminatórios da bondade social de estratificação geracional, incidindo sobre os mais velhos. Tomam a forma de juízos sobre a escolha entre quem já viveu muito e quem ainda tem muito para viver, de constatações sibilinas de que «já não vale tanto a pena», de apreciações do tipo «foi assim com o vírus, seria assim com outra qualquer doença». Intui-se que, no espírito de muita gente, há um certo alívio social com a notícia - sob a forma estatística - de que a larga maioria dos mortos está concentrada nos velhos. Tudo embrulhado em lindas palavras e eufemismos generosos que escondem um raciocínio generalizado de opção utilitarista. Sabemos - tal como ordena a lei natural da vida - que quem nasce primeiro deve, em regra, morrer primeiro. O que não podemos aceitar é que se acelere, de um modo injusto e discriminatório, esta forma de eutanásia social, geracional e terminal.

Durante décadas, foi um fartar de correcção política para que o velho não o parecesse. Assim nasceu o conceito europeizado de envelhecimento activo, que é obrigatório proclamar em qualquer discursata. Assim germinou uma escala de vocábulos para evitar o estigma semântico de velho. Outrora, o velho poderia ser chamado de ancião, como expressão de respeitabilidade diante da sabedoria que a vida dá. Derrubada a ancianidade, conceito considerado retrógrado,  tornou-se generalizada a nova raiz lexical da velhice - a idade  - e, assim, o termo mais genuíno de velho se transformou na forma anódina e quase abstracta do idoso. Os eufemismos continuaram e passou-se de idoso para sénior, sem que se aproveitasse a riqueza dessa mesma senioridade, pois que, cada vez mais, se cultiva o novo, o recente, o renovado, e se distrata o velho, o antigo, o longevo. Mas eis que, perante este repto dramático da pandemia, o sénior voltou a ser idoso e o idoso regressou a velho. Na óptica dominante de se ver a velhice como um peso e um sarilho, ser velho tornou-se mais obviamente inútil, embaraçador, descartável. Uma espécie de posta-restante da sociedade. Velho não dá retorno, só dá prejuízo. Eis que, por fim, esta pandemia veio reportar à luz do dia a denominação de utente (que palavra tão feia!). É assim que nos é noticiada a morte. Os velhos estão a morrer mais como utentes do que como pessoas. Utente do lar, utente da casa de repouso, utente de cuidados continuados, utente de hospitais. E tudo vemos com a distância de uma tela que se encarrega de nos tornar insensíveis ou nos anestesiar, de tão mecânica e repetidamente tudo ser noticiado ou explorado sem rebuço.  

No começo desta insondável crise, o vírus escolheu os velhos como primeiras vítimas e as autoridades conformaram-se com este diktat viral. Vítimas literalmente falando, mas também vítimas de uma via dolorosa de andar entre ali e acolá à espera da sua vez, vítimas pelo agravamento do eclipse dos avós proibidos de se aproximarem dos netos numa forma dramática de confinamento geracional, que vai além do geográfico. Para muitas pessoas velhas o confinamento já era uma realidade e agora suportam o confinamento do próprio confinamento. Mas, enquanto a maioria das pessoas estão confinadas para não adoecer, velhos em instituições de acolhimento estão a morrer por estarem confinados. Cada vez mais num forçado pacto com a solidão.

Se bem reparamos, diante da doença, do isolamento, da pobreza, da supressão de laços familiares e de proximidade, da morte, hoje tudo se quantifica em euros, percentagens e estatísticas indolores e assépticas. Não se ouvem os gritos dos velhos porque não são sensoriais, antes estão entranhados nas suas almas. Frequentemente, se diz que não há dinheiro. Dinheiro que, todavia, tem havido para perdoar dívidas de milhões de caloteiros encartados, de contumazes devedores, de bancos transformados em banquetas fraudulentas, de pequenos ou grandes caprichos políticos ou clientelares, etc.. Em toda esta crise incomoda-me muito a obsessão para que a economia volte rapidamente ao que era. Que diabo, por uma vez, deixemos de falar em economia para falarmos em proteger as pessoas e salvar vidas. Eu sei que é preciso voltar a revitalizar a  economia, mas a maneira, como a maior parte da vezes, a questão é colocada, já transporta em si o vírus de que nada de essencial irá mudar.

Circulam por aí várias versões de uma frase elucidativa: «aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra. A vós pedem-vos para ficar no sofá. Tenham juízo!» Há quem - julgando ser eterno -  pense que as quarentenas são uma forma de punição. Alguém lhes pode explicar definitivamente  que mesmo pretensamente imunes ao vírus ou assintomáticos, podem ser transmissores para os mais velhos?

Receio que, com um  deslassar político e algo apressado das medidas de controlo da pandemia, tenhamos tendência para viver entre um certo Portugal dos pequeninos (não necessariamente na idade) e o Portugal dos velhinhos.

3 Num plano mais prosaico, tenho aproveitado para rever jogos de futebol que diversos canais nos têm proporcionado. É uma forma de minorar as saudades e de ver jogos sem sobressaltos. Honestamente, devo dizer que só vejo os jogos do Benfica e, dentre estes, os que tiveram resultados positivos. Para me desconsolar com os (poucos) maus jogos encarnados, já me bastaram os que vivi no momento real. Duas conclusões tirei para mim. A primeira é a de que houve partidas onde, afinal, descobri que jogámos bem, quando antes não tinha ficado com essa ideia. É a consequência de, agora, os ter visto com calma, sem ansiedade e com tempo mental para chegar aos pormenores. A segunda é a do efeito da elevada rotação de plantéis nas equipas e a surpresa de poucos anos volvidos sobre os jogos ser incapaz de dizer de cor a equipa titular do meu clube. Ao invés, ainda hoje digo os conjuntos encarnados dos anos 50, 60, 70 e por aí adiante, como de outras equipas, desde o Belenenses ao Sporting da Covilhã, à CUF e ao Lusitano de Évora. Enfim, coisas de velho e memória do antigamente…