Testemunhas da História
Foi das coisas mais deliciosas que vi durante o confinamento: as chamadas por Instagram de Rafael Nadal para vários colegas do circuito ATP. Retive em particular a conversa com Roger Federer. O suíço numa casa de madeira, o espanhol em Maiorca. Num registo descontraído, informal, falaram da família, dos miúdos da academia de ténis do maiorquino e até houve tempo e oportunidade para Roger perguntar ao seu grande rival, com uma sonora gargalhada, se o mito de que era um falso canhoto se confirmava. Percebendo que não pela resposta, confessou as dificuldades de defrontar um esquerdino com as características técnicas de Rafa, ao que o outro respondeu com troca de elogios sinceros. Uma classe à parte. Naquele momento dei por mim a pensar sobre como são estéreis e inapropriadas as comparações e a necessidade doentia de querer fazer do atleta A ou B o melhor de sempre nestes tempos de ditadura da última imagem. Notei essa tentação após Nadal igualar o número de Grand Slam de Federer (20). Os espanhóis não se cansam de querer fazer dele à força o número 1 de todos os tempos, recordando, por exemplo, a vantagem de 24-16 de Rafa no confronto direto com Roger. Será sempre um argumento válido, mas a relação entre o fã e o atleta, seja de que desporto for, será sempre marcada pelas sensações e não pelos números. Aqueles que consideram Messi melhor que Ronaldo não mudarão de opinião se CR7 passar a ter mais Bolas de Ouro. E vice-versa. Na parte que me toca, reservo para Federer o Olimpo. Poderia justificar que é pela classe, o domínio total em piso rápido (o meu preferido), a sua esquerda ou aquele pulso que às vezes não parece ser humano, mas basta dizer que aquele tipo é o que mais me faz sorrir a ver uma partida de ténis. Mesmo que o melhor jogo de sempre que alguma vez tenha assistido (ainda melhor que a final do US Open de 2002 entre Agassi e Sampras, na despedida de Pistol Pete) foi aquele que ele perdeu frente a Nadal naquela tarde/noite épica na final de Wimbledon em 2008.
Os números também dizem que vem aí o novo dono dos recordes da Fórmula 1: se tudo correr como o esperado, Portimão e Portugal ficarão nos livros como o local onde Lewis Hamilton se tornará no piloto com mais vitórias desde desporto (92), ultrapassando o registo de Michael Schumacher, até agora o único com sete títulos mundiais (mas que será igualado pelo britânico). Mais uma vez, a estatística pode ser usada mediante os gostos de cada um. Não acredito que Hamilton venha a ser considerado o melhor de todos os tempos porque o inglês da Mercedes é da geração dos simuladores, da tecnologia, da ciência de dados, de um contexto muito mais seguro, menos aventureiro - e portanto menos atrativo para o grande público, que premeia sempre os mais loucos.
Mas se é injusto fazer comparações entre atletas de épocas diferentes, ainda mais é tentar fazê-lo nos desportos motorizados, que acompanham como nenhum outro a evolução tecnológica. Se formos ver um jogo de futebol de há 25 anos notamos algumas diferenças na velocidade e no maior preenchimento dos espaços e apenas isso; já na F1 a única semelhança entre um carro de 1995 e 2020 é que ambos têm quatro rodas e um volante. Nunca esquecerei uma reportagem do programa Top Gear com Hamilton, quando o piloto à data da McLaren foi convidado a conduzir o McLaren de Ayrton Senna. Estávamos em agosto de 2012, ele tinha acabado de vencer o GP do Canadá, só dormiu uma hora no avião por estar tão excitado. Gozou o prato e no final admitiu ter sido um dos melhores dias da vida dele. Afinal, tinha manobrado um carro com mais 500 cavalos que os atuais monolugares, sem downforcing, com mudanças manuais e espaço de sobra no cockpit. Lembrava-se de Senna conduzir no Mónaco só com uma mão no volante e prestou homenagem ao ícone de uma época na qual, como ele próprio admitiu, «a linha entre a vida e a morte era muito mais ténue». São tempos que já não voltam e nós, enquanto fãs seja de que desporto for, só temos de agradecer o facto de estarmos sempre a ser testemunhas da História, independentemente da carga de nostalgia.