Ter golo
NÃO me refiro às imagens já próprias do futebol, como «a bola a rasgar a relva»; ou sequer à pomposidade das preferências técnicas, como «o jogo apoiado» ou as «transições»; ou tão-pouco às modas que oscilam entre campos tão distantes como a filosofia e a ciência molecular, o que nos levou por exemplo a substituir «a nossa filosofia de jogo» pelo «nosso ADN». Aquilo para que chamo a atenção é uma mais requintada mutação verbal que tenho detetado nas análises de treinadores, jornalistas e comentadores: o «ter golo», no sentido de um jogador que tem golos, não porque efetivamente os tenha num jogo ou prova, não porque tenha, sei lá, 15 na liga ou 2 num jogo em curso, mas porque os marca com uma frequência que, dita assim, lhe será instintiva. «É um jogador com golo», deles se elogia.
O futebolista que tem golo é diferente do mero futebolista que faz golo; é até melhor, porque se um os faz e portanto ainda se dá a esse trabalho, o outro já os tem porque dele parecem ser parte intrínseca. É a suave chegada ao discurso do futebol do perpétuo debate entre ser e ter, entre être e avoir, entre to be and to have, os verbos auxiliares que fundamentam estes nossos idiomas, os primeiros que aprendemos, os que nos situam entre conceitos que, como humanos, nos são tão indispensáveis: a personalidade e a posse. Às vezes há idiomas que nos trocam voltas, como o inglês, no qual somos uma determinada idade (I am 38) em vez de a termos e lidamos com isso sem arrelias, pelo que no futebol tal acontecerá certamente, mesmo que o hábito nos mude em definitivo a forma de nos referirmos a alguém que é goleador ou, corrijo-me, a alguém que tem golo.
É até assinalavelmente filosófico isto de alguém «ter golo», parece-me, quase como se o jogador detivesse a ideia do próprio golo, perfeita, imutável, essencial e divina, antes de a transformar na coisa banal, variável, experimental e humana, de a meter na baliza.