Talvez bons pensamentos!...

OPINIÃO08.03.202305:30

Em Portugal continua-se a legislar muito e mal, e a maior parte dos regulamentos são ofensa permanente aos princípios jurídicos mais elementares

HÁ duas semanas, caminhava eu calmamente numa calle da capital espanhola quando, num escaparate de uma livraria, fui surpreendido pelo anúncio da nova Ley del Deporte, lei 39/2022, de 30 de Dezembro. Surpresa justificada pelo facto de, nos últimos tempos, não seguir tão de perto a legislação e doutrina espanhola em matéria desportiva, hábito que me ficou dos tempos finais do século passado e inícios deste milénio e século vinte e um, em que fiz o mestrado de Direito Desportivo, em Espanha. Tempos, aliás, de que guardo saudade, porque foram tempos de aprendizagem com grandes professores e mestres do País vizinho que, apaixonados pelo desporto em geral e o futebol em particular, tratavam os temas próprios desta área, com a mesma dignidade com que se tratam os mais diversos ramos do direito. Grande parte da evolução do desporto espanhol é devida à qualidade do seu pensamento jurídico, concretizada na legislação.

Bem gostaria eu - e muita mais gente gostaria - que em Portugal se tivesse esse cuidado de tratar com qualidade e exigência os diversos temas jurídicos, e não só, relacionados com o desporto e, designadamente, com o futebol, em vez de um debate que a maior parte das vezes faz apenas ruído, caindo amiudadas vezes naquilo que se convencionou chamar peixeirada, que tanta audiência provoca, mas que nada acrescenta de positivo ou construtivo.

Todas as semanas o tema é arbitragem, ou melhor, os casos de arbitragem, mas nenhum dos interessados vai ao fundo da questão. Horas de discussão sobre os penaltis que foram marcados ou que deviam ter sido marcados, discute-se a competência ou a seriedade e credibilidade da arbitragem, mas não se discute nada em profundidade, porque as corporações existem para deixar tudo na mesma e apenas reclamar quando se sentem virgens ofendidas, quando há muito deixaram de ser como a mulher de Cesar.

Mas voltando à minha caminhada pelas ruas de Madrid e à descoberta da nova lei do desporto espanhola, que entrou em vigor no primeiro dia deste ano de dois mil e vinte e três, tudo isto me levou, mais uma vez, a meditar sobre o protagonismo que o desporto alcançou com o passar dos anos, abrangendo a palavra desporto todo o tipo de actividades que têm por objectivo a melhoria da condição física e psíquica de que já se falava em tempos remotos: mens sana in corpore sana!

Nesta conformidade, os órgãos e organismos governamentais viram-se obrigados a melhorar as leis que regulam as actividades desportivas e a proteger os direitos dos profissionais que participam nessas actividades. Apesar disso, em Portugal, continua-se a legislar muito e mal, e a maior parte dos regulamentos são uma ofensa permanente aos princípios jurídicos mais elementares. Próprio dos tempos que vivemos, em que os governantes não têm saber ou experiência para as matérias que administram e, ainda por cima, não são assessorados por quem tem mérito, mas por quem tem cartão partidário.

São cada vez mais os cidadãos que recorrem a prática desportiva, e num ritmo que se tornou quase exponencial, por força do covid 19. Nesta conformidade, importa que a legislação acompanhe a realidade socioeconómica actual e futura.

Um dos pontos importantes é o crescimento do papel das mulheres no desporto, e agora também no futebol, sem que os ordenamentos jurídicos tenham respondido a este fenómeno, mas esta nova lei do desporto espanhol garante a viabilidade e estabilidade das competições em que participem pessoas do género feminino, independentemente das modalidades ou especialidades desportivas.

 Por outro lado, as entidades desportivas devem caminhar no sentido do equilíbrio na presença de homens e mulheres nos seus órgãos de governo, ainda que, pessoalmente, pense que não deve ser um caminho imposto, mas percorrido com naturalidade.

O artigo quarto dessa lei promove a igualdade efectiva no desporto, obrigando as federações desportivas e as ligas profissionais a ter um plano específico de conciliação e co-responsabilidade com medidas concretas destinadas a proteger a mulher em casos de maternidade e lactação. E, nesta linha, e no que respeita a mulheres grávidas, com a profissionalização do futebol feminino estabelece que se devem considerar nulas as clausulas contratuais que venham a permitir ou favorecer a rescisão unilateral do contrato por força da maternidade ou gravidez das mulheres desportistas.

A Lei aborda também, entre outros, o tema das sociedades anónimas desportivas, cuja legislação vai ser alterada em Portugal, muito em breve, mas não conheço em que sentido.

A lei espanhola anterior exigia, para a participação em competições oficiais profissionais de âmbito estatal, a transformação dos clubes em sociedades anónimas desportivas, com excepção daqueles que puderam manter a sua forma jurídica por apresentar saldo patrimonial líquido positivo nas últimas temporadas: Real Madrid, Barcelona, Atlético de Bilbao e Osasuna.

Considera-se, porém, no preâmbulo da nova lei, que o decurso do tempo tornou evidente a ineficácia deste modelo que visava terminar com a insolvência dos clubes tradicionais. Anos depois continuaram a manter altos níveis de endividamento, sendo a dita insolvência um problema endémico, muito particularmente no futebol profissional. A recuperação deste deve-se, aliás - pode ler-se - a outros factores que nada têm a ver com a exclusão de outras formas jurídicas para a participação neste tipo de competições, o que obriga a um novo questionamento sobre o modelo, já que na actualidade existem outros mecanismos de controle financeiro sobre os clubes.

Muitos outros temas são abordados na nova lei espanhola, que talvez possam servir de inspiração para uma nova mentalidade na abordagem dos problemas em Portugal, e sobre os quais nos debruçaremos futuramente.
Esta lei revogou a Ley del Deporte 10/1990, de 15 de Outubro, isto é, vigorou durante mais de trinta e dois anos. Antes desta, a Lei 13/1980, de 31 de Março, que vigorou dez anos. Durante este período (quarenta e dois anos), Portugal teve três Leis do Desporto, todas com nomes diferentes: Lei 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo), Lei 30/2004, de 21 de Julho (Lei de Bases do Desporto) e Lei 5/2007, de 16 de Janeiro (Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto). É apenas uma constatação, porque comentários cada um fará os que quiser. Nada, porém, acontece por acaso.

Termino com uma pergunta: para quando uma nova Lei do Desporto, com um nome tão simples como este? Uma lei que obrigue a transparência e democracia em todas as suas vertentes. E para ser cumprida por todas as pessoas e não apenas por algumas.

Espanha, nem bom vento, nem bom casamento. Mas se em Portugal se quiser pensar, talvez venham de lá bons pensamentos!...