Sporting: Crise, rescisões, judicialização

OPINIÃO20.06.201804:00

NÃO tenho por costume dedicar muitas linhas à vida interna dos clubes que não o Benfica. Mas, chegados a este ponto, é difícil omitir o que se vem passando no Sporting Clube de Portugal. Bem sei que há quem ache que quando algo se refere a um rival desportivo, quanto pior melhor. Não é assim que racionalmente penso. Hoje, o desporto em geral, e o futebol em especial, adquiriram uma tal dimensão e interacção que os problemas não começam e não se limitam ao âmbito estrito de um clube. E, na senda da globalização irreversível do futebol hipermediatizado, também se ultrapassam fronteiras à velocidade do som.

O Sporting vive momentos delicadíssimos da sua história centenária. A primeira disfunção é, na minha opinião, a que resulta de ainda se pensar e agir como se o paradigma gestionário ainda fosse o de há 50 anos, quando a emoção, bem mais do que a razão, era o factor decisivo da artesanal administração de um clube. Tudo mudou: o contexto, as regras, os mercados, o financiamento, o escrutínio. Por vezes, levados pela torrente e redemoinhos de um curso de acontecimentos, ignoram-se consequências estratégicas, afastam-se o médio e longo prazos, subestima-se a existência substantiva (e não meramente formal) de sociedades anónimas, não se é capaz de destrinçar entre o cartão de associado e o título de accionista. Tudo se confunde, tudo se atropela, tudo se perverte, em nome do dia seguinte ou de uma efémera vitória ou indesejada derrota.

Imaginemos uma qualquer empresa cotada em bolsa, aqui ou em qualquer parte, a ser objecto de sevícias de toda a ordem e alvo de comentários e de opiniões de retalho e a quente por parte dos seus principais stakeholders. Como estaria essa entidade no meio de furacões e contra furacões incontroláveis e incontrolados? Está à vista …

Pois, o Sporting e a sua SAD de futebol estão no centro do furacão. Não me pronuncio sobre a razão (ou falta dela) das várias facções em disputa. Já ouvi tanta coisa que, se fosse sportinguista, só desejaria voltar ao ponto zero com transparência, sentido de dever e cristalinidade não divisora e muito menos divisionista.

Acontece que o Sporting destes últimos tempos é um case study de haraquíri institucional. É, como se de repente, o ordenamento constitucional de uma associação com fins públicos se transformasse numa pedra-pomes, sem densidade e cheia de buracos. Em choques tectónicos de consequências imprevisíveis, criam-se e eliminam-se órgãos e geram-se regras ad hoc, num emaranhado por demais indecifrável. Um cacharolete de demissões que tanto foram, como, ao virar do momento seguinte, deixaram de o ser. Um órgão demissionário que, de repente, não se limita à mesa corrente e fica com a faca e o queijo na mão, nomeando uma comissão de fiscalização que, por sua vez, escolhida, mas não sufragada, resolve, sem apelo nem agravo, suspender sumariamente um conselho directivo eleito. Uma equipa directiva que proclama que ainda o é ou que faz que é, decidindo, ela própria, criar órgãos transitórios seja de assembleia-geral, seja de fiscalização neste caso constituindo jurisprudência inédita qual seja a de o órgão a ser fiscalizado nomear o órgão fiscalizador. Uma SAD com administradores suspensos no e pelo sócio maioritário, mas que, no ínterim, ainda o são naquela sociedade anónima, ao ponto de até territorialmente haver espaço e fronteiras em Alvalade entre SCP e SAD. Financiadores e banqueiros que alimentaram o mito e que, agora, são angélicas personagens de refundação do clube. Uma MAG demissionária que, não esperando uns dias para no caso de destituição da direcção convocar imediatamente eleições, prefere designar (em gestão de mesa corrente) uma equipa de gestão provisória, que, por sua vez, enfrenta a possibilidade de não entrar efectivamente em funções em choque com a direcção que pretende substituir antes do acto de destituição. Um grande clube que, por via directa ou indirecta, se oferece à judicialização da sua vida próxima, num contexto que vai deixar marcas profundas no seu universo. Que me perdoem os puristas, mas não consigo fixar os nomes de tantos órgãos provisórios, interinos, intermitentes, transitórios, temporários, que nascem como cogumelos! Que diabo, não haverá uma réstia de sensatez e pudor que ponha o Sporting Clube de Portugal (sempre invocado por palavras) à frente de tudo o resto? E quem tem medo, afinal, da mais lídima solução para a qual não haverá tempo a perder, ou seja, eleições dando a voz a quem a deve ter?

2A questão da rescisão do contrato por invocada justa causa por nove atletas do clube é uma situação que, seguramente, vai fazer correr muita tinta, entre advogados e estruturas de decisão judicial. Mas, além disso, dá-lhe uma dimensão a nível global e externo que, entre estupefacção inicial e análise subsequente, pode ser objecto de futura jurisprudência, de modo a evitar, entre outros aspectos, o chamado risco moral associado a certas práticas.

Sei que o que agora escrevo não será partilhado pela maioria dos sócios e adeptos do meu clube e, julgo, pela própria direcção. Mas, não ficaria bem com a minha consciência, se não o fizesse. Não sei se algum dos jogadores que rescindiram com o SCP chegará a vestir a camisola do Benfica. Alguns deles são bem apetecíveis de contratar, reconheço-o, e sou seduzido por essa hipótese. Também não esqueço que foi no mais primário anti-benfiquismo que o ainda presidente do SCP radicou a sua popularidade, mesmo entre os muitos notáveis incondicionais que só agora na 25.ª hora se deram conta da trapaça. Mas, no futebol, como em tudo na vida, há regras éticas para as quais não abro excepção, qual seja, por exemplo, a de que um fim bom (ou, pelo menos, desejável) pode justificar todo e qualquer meio. Recordo-me que fazia parte dos órgãos sociais do Benfica, quando em 1993, assisti in loco à chegada de faxes (era assim naquele tempo) com a comunicação de rescisão de atletas encarnados invocando justa causa por atraso no pagamento de remunerações. Sei o que senti de fúria e raiva (posso assim dizer) pelo aproveitamento ignóbil por parte da então direcção do Sporting de uma situação transitoriamente difícil do Benfica. Ainda houve a capacidade para estancar a hemorragia (João Pinto e Isaías, entre outros). Estou consciente que há uma diferença não despicienda nesse caso, pois o SCP esteve na base das rescisões dos trânsfugas, o que agora não aconteceu obviamente com o SLB. No fim da época seguinte, 1993-1994, demos a única resposta que, desportivamente, poderíamos e deveríamos dar: ser campeões nacionais e ter ido resolver o título a Alvalade no celebérrimo 6-3. Há um princípio moral que aqui invoco (Kant chamava-lhe imperativo categórico): não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. É em nome dele que, embora cativado pela oportunidade de recrutar magníficos jogadores, me sinto desconfortável com esta hipotética situação. Chega de vendetta neste tão inflamado e inflamável ambiente do futebol em Portugal. Lembram-se há anos quando o Borussia Dortmund estava prestes a ser liquidado por insolvência? Quem o ajudou, então? O seu principal rival, o Bayern de Munique… E, com isso, ganharam os dois e o futebol alemão…

 

3O SCP, como o SLB e o FCP, são pessoas colectivas de direito privado e de utilidade pública. Ora este último elemento e a importância que transportam na e para a sociedade talvez devesse exigir um maior e mais substantivo escrutínio público dos seus órgãos sociais. Falando em abstracto, bom seria que os candidatos a esses lugares fossem obrigados a, publicamente, exibir o seu curriculum vitae integral, assunto, aliás, que, ao contrário do que se passa sobre agentes políticos e públicos, não vejo os media lhe dedicarem tempo e espaço. E, embora possa parecer algo insólito, não deveria o poder legislativo impor, no futuro e como condição de preservação dos benefícios e prerrogativas associados à utilidade pública, regras de apresentação declarativa de rendimentos, incompatibilidades e outras condições, ao menos para os órgãos executivos eleitos? Estou seguro que seria uma forma dissuasora e preventiva de aventureirismos e certas formas de populismo para as quais hoje ainda não há verdadeiro antídoto legal e institucional.