Sobre o Exemplo

OPINIÃO23.08.202004:00

Histórias do Senhor Kraus neste Intervalo. Sátira e política.

O Chefe que dava o exemplo

O Chefe gostava de dar o exemplo. Mas tirando isso não gostava de dar nada a ninguém.
Quando algum desgraçado se aproximava dizendo:
- Eu precisava de apoio para investir na minha empresa...
O chefe ia logo com a frase:
- Olhe, por exemplo... - e lá continuava num longo discurso onde, de facto, exemplificava.
Quando o tal desgraçado voltava a casa, a mulher perguntava:
- Então, o Chefe? deu-te apoio?
E o homem respondia:
- Deu-me um exemplo.
Outras vezes, iam pedir coisas muito concretas ao Chefe.
Por exemplo, que mandasse tapar o buraco de uma estrada - devido a esse buraco já tinham ocorrido diversos acidentes e a população estava em polvorosa.
- Oh, Chefe, seria possível mandar tapar aquele buraco?! É que está um perigo! E não custa nada mandar reparar. Em duas horas aquilo vai ao sítio.
Pois bem, o Chefe, mesmo assim, não desarmava:
- A questão não é bem assim, sabe... - começava por dizer, e logo avançava - olhe, por exemplo...
E lá dava o seu exemplo.
O regresso a casa dos interlocutores do Chefe era, por isso, bastante repetitivo:
- Então, o Chefe deu ordens para avançar com a reparação da estrada?
- Não. Deu-me um exemplo.
E era sempre assim. Não dava apoio às pessoas que precisavam de apoio, não dava dinheiro às pessoas que lhe pediam dinheiro, não dava roupa às pessoas que precisavam de roupa, não dava casa às pessoas que precisavam de casa, não dava guarda-chuva às pessoas que estavam a apanhar chuva. Em suma: não dava alimentos, não dava água, não dava cobertores, não dava uma lâmpada, um bocado de sal, um parafuso, nada, não dava nada a ninguém, nada! Dava apenas o exemplo.

Sobre as férias dos juízes  

Os juízes aplicavam todas as leis da nação, todas, sem excepção, com o chamado escrúpulo do pormenor. A lei é clara, diziam, acerca de qualquer lei obscura.
A excepção era a lei que acabara de ser aprovada, lei que reduzia o tempo de férias dos juízes. Estranhamente, viam-se agora os juízes estupefactos, baralhados, pela primeira vez sem entenderem o sentido da lei.
Nem sequer entendiam o significado de números concretos, como estes: passar de três meses de férias para um mês.
Muitos juízes chegavam ao ponto de revelar toda a sua capacidade de reflexão e questionamento, dizendo: que significa três? Que significa 1? Como poderemos dizer, com toda a certeza, que 3 é maior do que 1, e que 1 é menor do que 3? Que sabemos nós sobre o universo das quantidades?
Foram dias de invulgar discussão filosófica.

- E quem lhes diz que trabalhamos mais só com um mês de férias do que com três?
- Sim, quem?
- Porque a explicação é simples: só descansando bem - durante vários meses - é que conseguiremos depois trabalhar. O trabalho, depois das férias, é feito, pelo menos, quatro vezes mais rápido. Pelas minhas contas, os cidadãos ainda ficam a ganhar.
- Quanto mais tempo de férias, mais trabalhamos.
- Exactamente.
- Portanto, se querem que trabalhemos mais tempo, têm de nos dar mais tempo de férias.
- É mesmo assim. É por esse lado que temos de pegar no problema.
- Vamos, pois, propor um aumento do número de meses de férias - de três para quatro. Que lhe parece?
- Julgo que o país, nesta altura, exige de nós, muito mais trabalho. Portanto: cinco, peça cinco meses de férias!