Sobre falar antes de pensar
- Em que sítio deve estar a cabeça?
- Como?
- Em que sítio deve estar a cabeça de um sujeito?
- Por mim, em cima.
- Em cima. Onde? Aqui?
- Exacto.
- Acima do coração?
- É uma bela posição relativa, parece-me.
- Mas se vossa excelência fizer o pino…
- Sim?
- O coração fica acima da cabeça. Se continuarmos a considerar o solo como referência.
- Exactamente, pelas minhas contas é isso mesmo.
- Chão, cabeça, coração, tronco, pernas e pés.
- Pés lá em cima.
- Sim. Up.
- Portanto, não devemos fazer o pino…
- Não.
- …se queremos manter a racionalidade.
- Isso.
- Por mim, não faço o pino por razões bem mais práticas: não me quero partir todo.
- Pois. Mas dizia: a cabeça sempre acima do coração. Uma questão de hierarquias, excelência.
- Podemos ter instintos e raiva, mas acima disso: o pensamento, a racionalidade. É isso?
- Isso mesmo.
- Porém há uma parte significativa dos humanos que parece andar com a cabeça e os pés trocados.
- Sim?! Porquê?
- Falam antes de pensar.
- Oh, mas isso…
- Falar antes de pensar: sai ar da boca e produz linguagem antes de ser activado o funcionamento do cérebro.
- Uuu, que horror. Parece a explicação do funcionamento de uma máquina.
- E é isso mesmo. O cérebro ainda está desligado e o sujeito já está a dizer uma quantidade enorme de frases.
- É como querer café antes de ligar a máquina que faz café.
- Exactamente, é isso mesmo, excelência.
- Falar antes de pensar.
- Querer café antes de ligar a máquina que faz café.
- Que síntese.
- Posso dar outra imagem?
- Pode, excelência.
- É como ter os pulmões, a máquina de produção do ar, acima da cabeça.
- Como? Explique lá isso, excelentíssimo.
- Repare, excelência, a linguagem oral não é mais do que ar que sai da boca numa forma mais ou menos organizada… alfabeticamente. Mas é ar.
- Ar, excelência, sem dúvida. Ar. Ar alfabetizado, mas ar.
- Ar, vapor, substâncias em estado gasoso.
- Isso.
- Portanto, excelência, falar antes de pensar é colocar o ar antes do raciocínio e é, no fundo, uma forma mental de fazer o pino.
- Uma forma mental de fazer o pino?
- Exacto. Vossa excelência, pode não fazer o pino fisicamente, mas se fala antes de pensar está a fazer psicologicamente o pino. Está a fazer intelectualmente o pino.
- Ou seja…
- Ou seja, vossa excelência está a pôr a sua cabeça quase ao nível dos pés dos outros.
- Uns centímetros acima do nível dos pés dos outros, mais exactamente.
- Isso mesmo.
- Há quem pense um metro e setenta, um metro e oitenta, acima do nível do solo. E há quem pense apenas uns centímetros acima do chão.
- Há o nível do mar como referência para as altitudes…
- …E há o nível dos sapatos, como referência para a qualidade de um discurso.
- Abaixo e acima do nível do mar.
- Abaixo e acima do nível dos sapatos.
- Pois. Deixe-me pensar numa personagem…
- Pense, excelência.
- Numa personagem que sobe a uma alta montanha.
- Sim.
- Um enorme esforço para chegar até lá e depois, lá de cima, eis que o sujeito começa a falar e só diz banalidades.
- O corpo está mil metros acima do mar, mas o pensamento apenas dois centímetros acima dos sapatos. É isso, excelência.
- Exactamente.
- Não é uma questão de altitude exterior, mas de altitude interior.
- Um discurso rasteiro, portanto, é isto mesmo: um discurso ao nível dos sapatos e do chão.
- Isso.
- Se queres subir o nível do discurso, não vale a pena subires a uma montanha, eis um conselho.
- Sim, não vale a pena um sujeito cansar-se.