Sinto, logo critico
Não estivéssemos a viver um período dramático e até podíamos achar piada ao queixume dos dois clubes mais poderosos em Portugal
NA era das verdades alternativas em que vivemos é cada vez mais urgente o contrapeso da moderação, ponderação e racionalidade. O futebol profissional foi um dos setores que continuou a sua atividade e tem servido, talvez mais do que nunca, para escape de uma população confinada física, psíquica e espiritualmente. Isso ficou bem patente nos recordes de audiência na final four da Taça da Liga, superando números de outros jogos importantes igualmente transmitidos em canal aberto. A meia-final da prova, entre Benfica e SC Braga, por exemplo, foi o programa mais visto dos últimos cinco anos, o que prova o papel social e cultural deste desporto. Talvez por isso, e mais do que nunca, pedia-se bom senso aos principais protagonistas, mas o que se tem assistido é o reforço de narrativas paralelas que só servem para alimentar os próprios egos em alguns casos ou alimentar ideologicamente a infantaria dos indignados que na verdade pouco mais podem fazer do que canalizar as agruras da vida para a batalha do pontapé na bola.
NÃO estivéssemos a viver um período dramático que vai marcar várias gerações e até poderíamos achar piada às queixas de FC Porto e Benfica sobre as arbitragens pelo ridículo que esse discurso carrega. Como se os balanços finais de cada época nas últimas décadas não nos provassem que têm sido ambos os mais beneficiados, variando apenas o momento. Legitimar a lengalenga dos dois clubes mais fortes em Portugal é o mesmo que aceitar as queixas de Pep Guardiola sobre o calendário apertado, porque assim fica impedido de colocar sempre os seus melhores jogadores - que azar dos Távoras esse de os mais ricos não poderem explorar em todo o seu esplendor a desigualdade perante os clubes mais fracos e com menos dinheiro, provando-se que quem mais tem menos deseja ceder.
MAS porque insistem os maiores emblemas lusos na lógica da confrontação e do queixume? Em primeiro lugar, porque podem e não estão sujeitos a uma condenação social - bem pelo pelo contrário, é legitimada por uma grande franja dos seus adeptos; em segundo, porque acreditam que resulta no jogo seguinte, com o árbitro seguinte, com o VAR seguinte. Mesmo que já não seja tanto assim (a arbitragem tem criado um escudo mas ainda longe de ser à prova de bala), é pelo menos o que parece ser - e a perceção da realidade é o que move as massas nestes dias da informação imediata. Fazem-no, e também é preciso dizê-lo, porque o espaço comunicacional está vazio. Devido a muitos erros, os media foram perdendo peso e capacidade de fazer aquilo que é a sua verdadeira essência (mediar); quando se chega hoje à conclusão de que os populismos na política mundial estão diretamente ligados ao empobrecimento das instituições-filtro, nas quais se inclui a Comunicação Social, é preciso dizer que no futebol isso já aconteceu há tanto tempo que hoje já nem é tema de reflexão. Os grandes clubes fecharam-se nas suas televisões e plataformas, desabituaram-se ao contraditório e movem-se apenas em dois eixos: alimentar a narrativa oficial ao bom estilo soviético e apontar baterias ao inimigo que existe do outro lado do muro. Se o método tem resultado é pelos motivos que já elenquei. Não fiquemos perplexos, por isso, pela escalada de queixas e gritarias num relvado perto da sua TV (qualquer dia até os roupeiros vão entrar dentro de campo). E quando se pensava que nada mais nos poderia surpreender, eis que a Associação Nacional de Treinadores de Futebol, numa prova de vida, veio a público criticar os árbitros por expulsarem os treinadores que na sua condição de «humanos» estão sujeitos a «sensações e emoções» e como tal, mediante «erros grosseiros e ‘descalibrados’» terão um certo direito a uma linguagem «porventura inadequada e inadmissível». Quando Fernando Pessoa afirmou que o «instinto humano tende a criticar porque sente, não porque pensa», fico a pensar se não terá feito uma viagem no tempo e trocado uma esplanada no Chiado pelo microcosmos deste futebol esquizofrénico que, apesar de tudo, nos diverte.