Semana 3 - João Maria

OPINIÃO29.03.202004:00

1 Vamos entrar, nesta semana que vai arrancar, em abril. Continuamos em casa, mudamos as nossas rotinas e escutamos e lemos as notícias deste vírus, que em coroa, se propaga por esta nossa aldeia. Global e local. Sim, o vírus não tem fronteiras. Salta rios e oceanos, serras e montanhas, ruas e estradas, pontes e viadutos . Este vírus , que seriamente nos preocupa e verdadeiramente nos ameaça, suscita angústias, gera medos e perturba consciências. Vamos entrar, acredito, no mês decisivo. Com números que  nos vão abalar e com  evidências da e na economia real. E esta realidade real vai chegar a múltiplos setores e, naturalmente, ao desporto em geral e, em particular ao futebol e, logo, à sua singular indústria. Seja a nacional, a europeia ou, até, a mundial  e , aqui, com a FIFA, ou alguns dos seus  principais atores, a quererem aproveitar este drama sanitário e esta crise económica para suscitarem uma reorganização das competições que não pode deixar de ser liminarmente rejeitada. E, acredito, que seria útil - muito mais útil - que algumas estruturas de comunicação abordassem essa questão que é bem estruturante para o futuro pós vírus!  

2 Estes tempos em que ficamos em casa levam-nos a diferentes leituras. Do desporto e da política, da literatura clássica às biografias, de cartas recebidas a artigos escritos há largos anos. Um dos livros que releio é de um dos grandes nomes da literatura sul-americana , Eduardo Galeano. Natural de Montevideo, viveu exilado na Argentina e, mais tarde, na Catalunha. Faleceu em 2015 mas deixou-nos  uma obra extraordinária. Os seus livros, deliciosos, conjugam o ensaio com a crónica, a poesia com o desporto e recolhem as vozes da alma e da rua e oferecem uma síntese, bem perfeita, entre a realidade e a memória. Vale a pena reler o seu Futebol ao sol e à sombra, as Mulheres ou o Livro dos abraços. Ou o que estou a reler, Os Filhos dos dias. A propósito do qual disse: «Vivemos presos numa cultura universal que confunde a grandeza com o grandinho. Creio que a grandeza alenta, escondida, nas coisas pequeninas, as pequenas histórias da vida quotidiana que vão formando o colorido mosaico da história grande.» O interessante é chegarmos ao seu dia 29 de março. Aí escreve que no ano de 1967, na Amazónia, brotou petróleo e os naturais daquela região essencial para o Brasil e o Mundo não conheciam a palavra contaminação! Passaram a conhecer essa nova realidade, esta nova palavra, ao verem peixes mortos, animais que fugiam, a terra que deixou de dar frutos e que algumas árvores secavam! Era a contaminação!

3 Este vírus, em coroa, contagia. E muito. Os Jogos Olímpicos foram adiados um ano. E , agora, começa a luta pelo novo calendário e pelas formas de qualificação dos (as) atletas que ainda não garantiram o seu acesso. As diferentes federações olímpicas e não olímpicas buscam soluções para o final das suas específicas competições e, também, preocupam-se com os seus Mundiais - normalmente ocorrem nos  anos  imediatos  aos Jogos - e que são, obviamente, as suas principais fontes de receita! Vai haver quebra de receitas e de salários. Vai haver substanciais quedas de valores de sociedades desportivas e algumas delas vão desaparecer. Vão mesmo. E acreditando que, apesar de iniciais resistências, os Estados e as estruturas de cúpula de cada modalidade vão apoiar, com estímulos específicos, os clubes , as associações desportivas, até as sociedades desportivas. Os tempos próximos exigem ponderação e bom senso. Sensibilidade e verdade. Responsabilidade e solidariedade! Muita solidariedade !  E aqui, a palavra tem de ser, em outro sentido, contaminação!

4 Na próxima semana será prorrogado o estado de emergência. E com a liberdade de circulação a ser , potencialmente, suscetível de restrição. O que vimos ontem é, em certos casos, de uma irresponsabilidade atrevida! Se vivemos um tempo de abstinência forçada do futebol - apesar das recordações de jogos fantásticos da nossa seleção de futebol no Canal 11 e que, porventura, poderiam ser cedidos, numa lógica de efetiva e real solidariedade a outros canais desportivos … - é desejável que todos - ou quase todos - entendam que este vírus, em coroa, é invisível, se propaga sem darmos conta e atinge gente de todas as idades. Os números o mostram. O vírus pega-se. E neste tempo da televisão não é educativo ver imagens como algumas de ontem e escutar jovens retidos em casa a perguntarem se eles podem e nós não podemos, porquê? E esta pergunta,  que exige autoridade na resposta, não foi feita nem na China nem na Coreia. Por sinal dois Estados com regimes políticos bem diferentes. Sair à rua por desporto não vale. Não vale mesmo.

5 Tudo o que aqui escrevi será lido um dia também pelo meu neto mais novo, o João Maria. Como reli, agora, uma carta que o saudoso Senhor meu Pai me escreveu num dos meus dias de anos. Nessa carta, ele que adorava história e de contar estórias - que levaram, por exemplo, a D. Agustina a um lindo  romance  a partir de um facto real por ele relatado! - levou-me às consequências da gripe espanhola que nos atingiu em 1918/1919 e, também, aos dramas do racionamento de bens durante a segunda guerra mundial. Ele que nascera no final da primeira guerra e que prestara serviço militar durante a segunda. E contava, na sua deliciosa escrita, estas duas tempestades que atingiram Portugal. Agora, com desculpas sinceras ao Nuno e ao Armando - ficam para a semana! -, te digo, meu querido João Maria, que a festa de anos do Avô será vivida à distância. Não nos abraçaremos nem me poderás dar um beijo. Não apagarás as velas e não cantaremos, a sorrir um para o outro, os parabéns. Faremos uma telechamada ! E não haverá mentiras! É um dia diferente, num momento único da nossa vida - da minha e da tua e de teus queridos irmãos - e com a consciência que ficamos em casa. Tu e eu. E daqui a alguns anos vais ler este artigo e o Alexandre Maria e o Zé Maria te lembrarão, com todo o carinho e o imenso afeto, que, em março e abril - e também Maio - de 2020 ficaram em casa, não foram à escola - mas ela veio ter convosco! - e que uma pandemia infetou e vitimou largos milhares de pessoas. Com eles sei bem, principalmente nestes complexos tempos, que vivemos três infâncias: nossa, de nossos filhos e de nossos netos! E sabendo que tu és, João Maria, uma das coroas do Avô. E lerás aquele  livro que te deixarei, Os Filhos dos dias! Realidade e memória! Um grande e apertado abraço deste Avô Fernando que tanto gosta de ti!